O Peso do Silêncio: A História de Teresa e as Suas Filhas
— Mãe, não podes fazer isto! — gritou a Mariana, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto a Ana cruzava os braços, encostada à porta da cozinha. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar, tornando o ambiente quase irrespirável.
Senti o coração apertar-se no peito. Tantas vezes sonhei com este momento, mas nunca imaginei que fosse assim tão doloroso. Olhei para as minhas filhas, as duas mulheres que criei sozinha desde que o António nos deixou, e perguntei-me se alguma vez me perdoariam.
— Filhas, eu preciso disto — disse, tentando manter a voz firme. — Preciso de pensar em mim, só desta vez.
A Mariana abanou a cabeça, como se eu tivesse acabado de confessar um crime. — Pensar em ti? E nós? E a avó? Quem vai cuidar dela agora?
A Ana, sempre mais fria, lançou-me um olhar cortante. — Sempre disseste que família era tudo. Agora vais embora como se nada fosse?
O silêncio caiu pesado. O relógio da parede marcava sete da manhã, mas parecia já noite dentro daquela casa. Lembrei-me de quando eram pequenas e corriam pela sala, rindo, sem saberem das contas por pagar ou das noites mal dormidas. Lembrei-me de como me prometi que nunca lhes faltaria nada — e de como me esqueci de mim nesse processo.
A decisão estava tomada há meses, mas só agora tinha coragem de a verbalizar. Ia sair de casa. Ia deixar a aldeia onde vivi toda a vida e mudar-me para Lisboa, para trabalhar numa livraria e, quem sabe, começar de novo. Aos 54 anos, sentia-me velha e nova ao mesmo tempo.
— Não estou a abandonar-vos — tentei explicar. — Só quero viver um pouco para mim. Já dei tudo o que tinha.
A Mariana chorava baixinho. A Ana saiu da cozinha sem dizer palavra. Fiquei sozinha com o som do vento a bater nas janelas e o cheiro do café arrefecido.
Naquela noite, não consegui dormir. Oiço ainda as palavras da Mariana ecoarem na minha cabeça: “E nós?” Sempre “nós”, nunca “tu”. Passei a vida a ser mãe antes de ser mulher, antes de ser Teresa.
No dia seguinte, fui visitar a minha mãe ao lar. Ela olhou para mim com aqueles olhos já cansados pela idade e pela doença.
— Vais mesmo embora? — perguntou ela, com uma voz quase sumida.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Mãe, preciso disto. Preciso de respirar.
Ela sorriu tristemente. — Eu compreendo. Só não sei se as tuas filhas vão compreender.
Saí do lar com um nó na garganta. Senti-me egoísta, mas também livre pela primeira vez em décadas.
Os dias seguintes foram um turbilhão: malas feitas às escondidas, telefonemas curtos com as filhas cheios de silêncios e frases cortadas. O meu irmão, o Jorge, ligou-me:
— Teresa, tens a certeza disto? A aldeia vai falar…
— Que fale — respondi, surpreendendo-me com a minha própria coragem. — Já vivi demasiado tempo para os outros.
Na véspera da partida, tentei reunir as minhas filhas para um jantar. A Ana recusou-se a vir; a Mariana apareceu tarde e mal falou comigo. O jantar foi um desfile de pratos frios e olhares vazios.
— Mãe… — disse ela finalmente, já perto do fim. — Tenho medo que te arrependas.
Olhei-a nos olhos e vi ali a menina assustada que sempre quis proteger.
— Talvez me arrependa — admiti. — Mas prefiro arrepender-me do que fiz do que do que nunca tentei.
No comboio para Lisboa, chorei baixinho enquanto via os campos passarem pela janela. Senti-me órfã das minhas próprias escolhas e ao mesmo tempo dona delas pela primeira vez.
Lisboa era barulhenta e cheia de vida. A livraria era pequena mas acolhedora; os livros cheiravam a promessas e possibilidades. Pela primeira vez em anos, acordei sem sentir o peso do mundo nos ombros.
Mas as saudades das minhas filhas eram uma dor surda que não passava. Mandava-lhes mensagens todos os dias; raramente respondiam. No Natal, voltei à aldeia. A Ana mal me olhou; a Mariana abraçou-me com força mas chorou durante todo o jantar.
— Não percebo porque é que tinhas de ir embora… — sussurrou ela.
— Porque precisava de me encontrar — respondi.
Os meses passaram devagar. Fiz amigos novos em Lisboa: a Rosa, que também fugiu de uma vida sufocante; o Manuel, viúvo recente que me ensinou a dançar fado nas noites quentes de verão; até a dona Amélia do café da esquina sabia já o meu nome e o meu café preferido.
Mas as minhas filhas continuavam distantes. Um dia recebi uma chamada da Mariana:
— Mãe… podes vir cá? A avó está pior.
Voltei à aldeia sem hesitar. No lar, sentei-me ao lado da minha mãe enquanto ela dormia. As minhas filhas estavam lá; olhámo-nos em silêncio durante muito tempo.
Quando a minha mãe partiu naquela madrugada fria de março, chorámos juntas pela primeira vez em anos. Abracei as minhas filhas como se fossem ainda bebés nos meus braços.
Depois do funeral, sentámo-nos as três na cozinha onde tudo começou.
— Desculpa se te magoei — disse a Ana finalmente. — Só não percebia porque é que tinhas de ir embora…
— Porque precisei de ser eu própria — respondi baixinho. — Mas nunca deixei de vos amar.
A Mariana pegou-me na mão.
— Achas que algum dia vamos conseguir perdoar-nos umas às outras?
Olhei para elas e vi não só as minhas filhas mas também mulheres com dúvidas e medos próprios.
Agora escrevo esta história sentada no pequeno apartamento em Lisboa, rodeada dos livros que sempre sonhei ler e das memórias que nunca pensei ter coragem de criar.
Pergunto-me muitas vezes: será possível ser mãe sem nos perdermos? Será egoísmo querer ser feliz depois de uma vida inteira dedicada aos outros? E vocês… já sentiram este peso do silêncio entre quem mais amam?