Depois da Partida do Meu Irmão: Entre Fotografias e Silêncios
— Não tens nada a reclamar, Sofia. O Pedro deixou tudo para mim, estava no testamento. — A voz da Teresa ecoava fria, quase mecânica, enquanto me entregava uma caixa de cartão gasta, cheia de fotografias antigas.
Fiquei ali, parada no corredor do apartamento onde crescemos, sentindo o cheiro a cera do chão misturado com o perfume doce e forte da Teresa. O Pedro já não estava. O meu irmão, o meu melhor amigo, tinha partido há três semanas. E agora, tudo o que restava dele — os livros, os discos de vinil, o relógio do avô, até o cão velho — tudo tinha passado para as mãos dela. Eu? Fiquei com uma caixa de memórias e um silêncio ensurdecedor.
Lembro-me de quando éramos pequenos. O Pedro era dois anos mais velho, mas sempre me deixava ganhar nas corridas até ao portão da escola. A nossa mãe gritava da janela: “Não se atrasem!” E nós ríamos, cúmplices. Crescemos juntos, partilhámos segredos, sonhos e até medos. Quando os nossos pais morreram num acidente de carro, foi o Pedro que me segurou a mão no funeral. “Agora somos só nós os dois”, sussurrou-me ao ouvido. Acreditei que seria sempre assim.
Mas a vida não é feita de promessas infantis. O Pedro conheceu a Teresa na faculdade. Ela era bonita, inteligente e determinada. No início, tentei gostar dela. Mas havia sempre uma distância, uma barreira invisível entre nós. Ela olhava-me como se eu fosse um incómodo, uma recordação do passado que preferia esquecer.
Quando o Pedro adoeceu — um cancro rápido e cruel — tentei estar presente. Ia ao hospital todos os dias, levava-lhe livros e bolos caseiros. A Teresa estava sempre lá, mas nunca me deixava sozinha com ele por muito tempo. “O Pedro precisa de descansar”, dizia-me, fechando a porta atrás de mim.
No dia em que ele morreu, a Teresa não me ligou. Fiquei a saber pela enfermeira do hospital. Corri para lá, mas já era tarde demais. O corpo do meu irmão já tinha sido levado para a morgue. Senti-me traída, roubada até no último adeus.
O funeral foi frio e rápido. Pouca gente falou comigo. Os amigos do Pedro evitavam o meu olhar; os da Teresa nem sabiam quem eu era. No final da cerimónia, ela aproximou-se de mim:
— O Pedro queria que tudo fosse simples. Não vale a pena prolongar isto.
Fiquei sem palavras. Queria gritar, perguntar-lhe porque me excluía assim da vida do meu próprio irmão. Mas limitei-me a acenar com a cabeça e fui para casa.
Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Recebi um email do advogado da família: “Segundo o testamento deixado pelo seu irmão Pedro Manuel Silva, todos os bens passam para a esposa Teresa Maria Lopes.” Nem uma linha para mim. Nem uma palavra.
Tentei falar com ela:
— Teresa, podemos conversar? Eu só queria ficar com algumas coisas do Pedro… talvez os livros dele ou o relógio do avô…
Ela olhou-me como se eu fosse uma criança birrenta:
— O Pedro deixou tudo claro no testamento. Não quero discussões.
— Mas… éramos irmãos! — insisti, sentindo as lágrimas a quererem saltar.
— Agora ele era meu marido — respondeu seca. — Tens de aceitar.
Aceitar? Como se aceita ser apagada da vida de alguém que amamos? Como se aceita que as memórias partilhadas não valem nada perante um papel assinado?
Passei noites inteiras a vasculhar aquela caixa de fotografias. Vi-nos pequenos na praia da Figueira da Foz, cobertos de areia; vi o Pedro adolescente com o cabelo comprido e um sorriso maroto; vi-nos no Natal, à volta da mesa dos nossos pais, antes de tudo mudar.
Comecei a sentir raiva. Raiva da Teresa por me excluir; raiva do Pedro por não ter pensado em mim; raiva de mim própria por não ter lutado mais. Tentei falar com alguns familiares distantes:
— A Teresa sempre foi assim… — disse-me a tia Lurdes ao telefone. — O Pedro devia ter pensado melhor nas coisas.
— Mas ele amava-te muito — acrescentou o primo Rui. — Talvez estivesse confuso…
Confuso? Ou simplesmente cansado? Talvez quisesse evitar conflitos entre nós as duas.
Os meses passaram e fui-me afastando de tudo e todos. Os amigos do Pedro deixaram de ligar; os meus próprios amigos não sabiam o que dizer. No trabalho, evitavam falar comigo sobre o assunto.
Uma noite, sentei-me no chão da sala com as fotografias espalhadas à minha volta. Peguei numa em que estávamos os dois abraçados na varanda dos nossos pais, com Lisboa ao fundo. Chorei como há muito não chorava.
No dia seguinte, decidi ir à casa onde crescemos — agora propriedade da Teresa — para tentar falar uma última vez.
Ela abriu a porta com ar impaciente:
— O que queres agora?
— Só queria entrar um momento… só para me despedir…
Ela hesitou, mas acabou por me deixar entrar.
A casa estava diferente: móveis novos, quadros modernos nas paredes, quase nada restava dos nossos pais ou do Pedro. Senti-me uma estranha na minha própria história.
No quarto do Pedro encontrei apenas uma estante vazia e um cheiro a tinta fresca.
— Já vendi quase tudo — disse ela atrás de mim. — Não fazia sentido guardar tralha.
Tralha? Aquilo era a nossa vida.
Saí dali sem dizer mais nada. Na rua, sentei-me num banco de jardim e olhei para o céu cinzento de Lisboa.
Pergunto-me muitas vezes: o que resta de nós quando perdemos tudo? Será que as memórias chegam para preencher o vazio? Ou será que somos apenas sombras nas fotografias antigas dos outros?
E vocês? Já sentiram que deixaram de existir na vida de alguém que amavam?