Quando o Amor se Torna Dívida: A História de Helena e Rui

— Helena, precisamos de conversar — disse Rui, com aquela voz fria que só usava quando algo estava realmente errado. O relógio da cozinha marcava 21h17, e eu ainda sentia o cheiro do arroz de pato que tinha acabado de servir. Os miúdos já estavam na cama, mas o silêncio entre nós era tão pesado que quase os acordava.

— Sobre o quê? — perguntei, tentando esconder o tremor na minha voz. Sabia que algo vinha aí, mas nunca poderia adivinhar o que estava prestes a ouvir.

Ele pousou um envelope castanho na mesa. — Estive a fazer contas. Desde que ficaste desempregada, há quase um ano, tenho suportado todas as despesas da casa. Não é justo. Acho que devias começar a pensar em devolver-me esse dinheiro. Pelo menos uma parte.

Fiquei sem ar. O arroz de pato parecia agora cimento no meu estômago. — Rui… estás a falar a sério? Somos casados há dez anos! Sempre partilhámos tudo…

Ele desviou o olhar. — Não é uma questão de amor, Helena. É uma questão de justiça. Eu também tenho os meus limites.

Naquela noite, não dormi. Fiquei a olhar para o teto do nosso quarto, ouvindo a respiração pesada de Rui ao meu lado. Lembrei-me de quando nos conhecemos na faculdade em Coimbra, das noites em que dividíamos uma sandes porque não havia dinheiro para mais. Sempre fomos uma equipa. Ou pelo menos pensei que éramos.

No dia seguinte, liguei à minha irmã, Marta. — Ele pediu-me para lhe pagar as contas da casa… Como se eu fosse uma hóspede!

Marta suspirou do outro lado da linha. — Helena, tu sabes como ele é com dinheiro… Mas isto é demais. Já falaste com a mãe?

— Ainda não… Não quero preocupar ninguém. Talvez seja só uma fase dele.

Mas não era só uma fase. Rui começou a deixar recibos em cima da mesa: luz, água, supermercado. Tudo somado e anotado numa folha de Excel impressa. Até os iogurtes das crianças estavam lá.

— Isto não é vida! — gritei-lhe numa noite, já sem conseguir conter as lágrimas. — Achas mesmo que é assim que se constrói uma família?

Ele encolheu os ombros. — Se não gostas, podes sempre ir para casa da tua mãe.

Aquela frase ficou-me cravada no peito como uma faca. Passei dias a arrastar-me pela casa, tentando encontrar trabalho em vão. Mandava currículos todos os dias, mas ninguém respondia. Sentia-me inútil, um peso morto.

Os meus filhos começaram a perceber que algo não estava bem. O Diogo, com oito anos, perguntou-me um dia: — Mãe, porque é que o pai está sempre chateado contigo?

Abracei-o com força, tentando esconder as lágrimas. — São coisas de adultos, meu amor.

A minha mãe acabou por perceber que algo se passava e apareceu lá em casa sem avisar. Encontrou-me sentada no chão da cozinha, rodeada de papéis e contas.

— Helena, filha… O que se passa?

Desabei nos braços dela. Contei-lhe tudo: o desemprego, as exigências de Rui, o medo de perder a casa e os filhos.

— Não podes continuar assim — disse ela com firmeza. — Vem para minha casa com os miúdos até arranjares trabalho.

Mas eu não queria desistir do meu casamento assim tão facilmente. Ainda amava Rui, ou pelo menos amava o homem que ele tinha sido.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro, Rui saiu para beber com os amigos e voltou tarde e bêbado. Eu estava sentada na sala quando ele entrou.

— Sabes qual é o teu problema? — disse ele, tropeçando nas palavras. — Achas que tudo te é devido! Mas eu estou farto de ser o único adulto aqui!

Levantei-me devagar e olhei-o nos olhos. — O meu problema é ter acreditado que éramos uma equipa…

No dia seguinte, tomei uma decisão difícil: peguei nos miúdos e fui para casa da minha mãe.

Os primeiros dias foram um alívio e um tormento ao mesmo tempo. Sentia-me livre daquele ambiente tóxico, mas também derrotada por não ter conseguido salvar o casamento.

Rui ligava todos os dias, ora a pedir desculpa, ora a exigir dinheiro. Chegou mesmo a ameaçar levar-me a tribunal por causa das despesas.

A Marta foi incansável: ajudou-me a encontrar um part-time numa loja do centro comercial e ficou com os miúdos quando eu trabalhava à noite.

Com o tempo, comecei a reconstruir-me. Descobri forças que não sabia ter. Os meus filhos voltaram a sorrir e eu aprendi a viver com menos.

Um dia, meses depois, recebi uma carta do advogado de Rui: ele queria formalizar a separação e exigia metade das despesas dos últimos doze meses.

Fui ter com ele ao café onde costumávamos ir quando namorávamos.

— Rui… ainda te lembras de quem éramos? — perguntei-lhe, olhando-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

Ele baixou a cabeça. — As coisas mudaram…

— Pois mudaram — respondi eu. — Mas sabes o que nunca mudou? O amor pelos nossos filhos. Espero que um dia consigas perceber isso.

Saí dali com o coração apertado mas leve por dentro. Pela primeira vez em muito tempo senti-me dona do meu destino.

Hoje olho para trás e pergunto-me: como é possível que o dinheiro destrua aquilo que demorámos anos a construir? Será que algum casamento resiste quando a confiança se transforma numa folha de Excel? E vocês… já sentiram que aquilo que era amor se tornou apenas numa conta por pagar?