Quando a Avó Descobriu Que o Neto Esperava Pela Sua Casa
— Então é isso? — perguntei, com a voz a tremer, enquanto olhava para o meu irmão, Rui, sentado à mesa da cozinha da nossa avó. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o silêncio pesado que pairava no ar. — Vais mesmo pedir à avó para te passar a casa ainda em vida?
Rui desviou o olhar, fingindo interesse numa migalha de pão sobre a toalha de linho já amarelada pelo tempo. — Não é bem isso, Marta. Só acho que faz sentido ela resolver as coisas enquanto está lúcida. Assim evita-se confusões depois…
A avó Maria, sentada na ponta da mesa, apertava as mãos magras uma contra a outra. Os seus olhos, outrora vivos e cheios de histórias, estavam agora baços, como se já tivessem visto demasiado. — Vocês acham que eu sou um fardo? — murmurou ela, quase num sussurro.
O silêncio caiu como uma sentença. Senti o peito apertar-se de culpa e raiva ao mesmo tempo. Não era suposto ser assim. Crescemos naquela casa, entre os cheiros dos cozinhados da avó, as histórias à lareira e as tardes de verão no quintal. Como é que agora tudo se resumia a papéis e propriedades?
Lembro-me do dia em que tudo começou a desmoronar. O meu pai, António, tinha morrido há dois anos, vítima de um AVC fulminante. Desde então, a avó Maria ficou mais frágil, mas nunca perdeu o espírito. Rui, sempre mais prático e ambicioso, começou a falar cada vez mais sobre o futuro da casa. “É melhor tratar disso antes que seja tarde”, dizia ele à minha mãe, Ana, que só abanava a cabeça e mudava de assunto.
Eu tentava manter-me fora dessas conversas. Achava-as cruéis. Mas naquela manhã de sábado, quando cheguei à casa da avó para o habitual almoço em família, percebi logo que algo estava diferente. O Rui estava lá cedo, com uma pasta cheia de papéis e um ar decidido.
— Avó, precisamos de falar — disse ele assim que ela se sentou à mesa.
A avó olhou para mim, como quem procura refúgio. — Sobre o quê, filho?
— Sobre a casa. Sobre o futuro. Não queremos que fiques preocupada com nada…
Vi as mãos dela começarem a tremer. Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe nos dedos frios. — Avó, não tens de decidir nada agora.
Mas Rui insistiu. Falou de impostos, de burocracias, de como era melhor resolver tudo em vida para evitar discussões entre mim e ele depois dela partir. Falou como se ela já não estivesse ali.
A avó calou-se durante muito tempo. Depois levantou-se devagar e foi até à janela. Ficou ali parada, a olhar para o jardim onde eu e o Rui brincávamos em pequenos.
— Sabem o que mais me custa? — disse ela finalmente, sem se virar para nós. — É perceber que vocês estão mais preocupados com estas paredes do que comigo.
O Rui tentou justificar-se, mas eu sabia que era tarde demais. Algo tinha mudado naquele instante.
Nos dias seguintes, a tensão aumentou. A minha mãe chorava sozinha na cozinha quando pensava que ninguém via. O Rui evitava-me e falava cada vez menos com a avó. Eu sentia-me dividida: queria proteger a avó, mas também não queria perder o meu irmão.
Uma noite, ouvi a avó chorar no quarto dela. Entrei devagarinho e sentei-me na beira da cama.
— Desculpa, avó — sussurrei. — Não era suposto ser assim.
Ela passou-me a mão pelo cabelo como fazia quando eu era criança. — Sabes, Marta… Quando somos novos achamos que a família é para sempre. Mas basta um papel para tudo mudar.
No domingo seguinte houve um almoço tenso. O Rui apareceu com um advogado amigo dele. A avó recusou-se a sair do quarto. A minha mãe tentou mediar as coisas, mas acabou por gritar com o Rui: “A tua avó não é um objeto!”
O advogado foi-se embora sem conseguir nada assinado. O Rui saiu porta fora sem olhar para trás.
Durante semanas ninguém falou do assunto. A avó ficou mais calada, mais distante. Eu tentava animá-la com passeios ao parque ou bolos caseiros, mas ela parecia ter perdido o brilho.
Um dia recebi uma mensagem do Rui: “Precisamos de conversar”.
Encontrei-o num café perto do trabalho dele. Estava abatido.
— Não era isto que eu queria — disse ele baixinho. — Só pensei que estava a proteger toda a gente…
— Protegeste quem? — perguntei-lhe, sentindo as lágrimas nos olhos. — A avó sente-se traída por nós.
Ele baixou a cabeça. — Achas que ela algum dia me vai perdoar?
Não soube responder-lhe.
Na semana seguinte a avó caiu nas escadas e partiu o braço. Fui com ela ao hospital e fiquei lá até de madrugada. No regresso a casa ela olhou para mim e disse:
— Não quero morrer sem ver vocês bem um com o outro.
Prometi-lhe que ia tentar.
Falei com o Rui e convenci-o a vir pedir desculpa à avó. Ele veio, nervoso como nunca o vi antes.
— Avó… Desculpa — disse ele com lágrimas nos olhos. — Fui egoísta e só pensei em mim.
A avó abraçou-o com dificuldade por causa do braço engessado.
— Só quero paz nesta casa — disse ela.
As coisas melhoraram um pouco depois disso, mas nunca voltaram a ser como antes. A sombra da discussão ficou sempre ali, pairando sobre nós como uma nuvem cinzenta.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena? Será que algum dia conseguimos realmente perdoar-nos uns aos outros? Ou há feridas que nunca saram?
E vocês? Já passaram por algo assim? O que fariam no meu lugar?