“Não Sou Ama Nem Empregada”: O Dia em Que Disse à Minha Filha Que Também Tenho Vida Própria
— Mãe, podes ficar com o Tomás amanhã? — A voz da Leonor vinha do outro lado da linha, apressada, quase automática. — Tenho uma reunião importante e o Miguel não pode sair do trabalho.
Olhei para o relógio da cozinha. Eram quase oito da noite. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, mas eu já sentia o peso do cansaço nos ombros. Tinha passado o dia inteiro a cuidar do Tomás, o meu neto de dois anos, enquanto a Leonor tentava equilibrar o teletrabalho com as exigências de ser mãe. Não era a primeira vez que me pedia isto. Nem seria a última, se eu não dissesse nada.
Respirei fundo antes de responder. — Leonor, amanhã combinei ir ao cinema com a Teresa. Já tinha dito que queria começar a sair mais, lembras-te?
Do outro lado, silêncio. Depois, um suspiro. — Mas mãe… és sempre tu que nos ajudas. Não podes mesmo?
Senti um nó na garganta. Lembrei-me dos primeiros meses depois do nascimento do Tomás: noites mal dormidas, fraldas trocadas às pressas, Leonor exausta e eu a tentar ser o pilar de tudo. Fiz tudo por amor, mas agora sentia-me… usada? Talvez fosse injusto pensar assim, mas era assim que me sentia.
— Leonor, eu adoro o Tomás. Sabes disso. Mas não sou ama nem empregada. Também preciso de tempo para mim.
O silêncio dela foi como um murro no estômago. Senti-me culpada imediatamente. Mas também senti alívio por finalmente ter dito aquilo em voz alta.
— Então é isso? — A voz dela tremia. — Agora que preciso mesmo de ti, decides pensar em ti?
— Não é isso, filha. Só quero que percebas que também tenho direito a viver. Passei anos a cuidar de ti e do teu irmão, depois do pai ter ido embora… Agora queria um pouco de paz.
Ela desligou sem dizer mais nada.
Fiquei ali, parada na cozinha, a olhar para o telemóvel como se ele pudesse dar-me respostas. Senti-me egoísta. Mas também senti raiva — raiva de mim própria por ter deixado chegar a este ponto, raiva da Leonor por não perceber que eu também sou gente.
Na manhã seguinte, acordei cedo e fui até à janela. O céu estava cinzento, típico de Lisboa em novembro. Lembrei-me dos meus próprios pais: nunca tiveram tempo para si próprios. A minha mãe morreu cedo, cansada demais para sonhar. Sempre prometi a mim mesma que não seria assim.
O telefone tocou outra vez. Era a Teresa.
— Então, Maria? Pronta para irmos ao cinema?
Sorri pela primeira vez em dias. — Prontíssima.
No caminho para o cinema, contei-lhe tudo.
— Sabes — disse ela —, às vezes temos de ensinar os nossos filhos a crescerem outra vez. Eles esquecem-se de que somos pessoas antes de sermos mães.
As palavras dela ficaram comigo durante todo o filme. Quando voltei para casa, encontrei uma mensagem da Leonor: “Desculpa pelo que disse ontem. Estou só muito cansada.”
Respondi: “Eu sei. Mas também estou cansada, filha.”
Durante dias não falámos muito. O Miguel veio buscar o Tomás duas vezes sem dizer grande coisa. Senti falta do meu neto, mas também senti uma leveza nova — como se tivesse recuperado uma parte de mim que estava adormecida há anos.
No domingo seguinte, Leonor apareceu à porta com o Tomás ao colo.
— Podemos conversar? — perguntou ela, olhos vermelhos.
Sentámo-nos na sala. O Tomás brincava no tapete com os carrinhos.
— Mãe… — começou ela — eu sei que tens razão. Só que às vezes sinto-me tão sozinha… E tu sempre foste o meu apoio.
Peguei-lhe na mão.
— Eu estou aqui para ti, filha. Mas preciso que percebas que também tenho sonhos e vontades. Não quero acabar como a avó Rosa: cansada e triste.
Ela chorou baixinho. Eu abracei-a.
— Podemos tentar encontrar um equilíbrio? — perguntou ela.
Assenti. — Podemos sim. Mas tens de me prometer que vais pedir ajuda ao Miguel também. E talvez possas procurar uma ama para alguns dias…
Ela sorriu entre lágrimas.
— Prometo.
Nessa noite fiquei com o Tomás para ela poder sair com o Miguel. Quando ele adormeceu no meu colo, olhei para ele e pensei em tudo o que tinha mudado na minha vida desde que fui mãe pela primeira vez há trinta anos atrás.
A verdade é que nunca deixamos de ser mães — mas também nunca deixamos de ser mulheres com sonhos próprios.
Agora pergunto-me: quantas de nós já se sentiram assim? Quantas vezes deixámos de lado quem somos para sermos tudo para os outros? Será possível encontrar esse equilíbrio sem perdermos quem amamos… ou a nós próprias?