Entre o Amor e a Família: Quando o Meu Marido Brigou com os Meus Pais

— Não volto a pôr os pés naquela casa, Mariana! — gritou o Miguel, batendo a porta da sala com tanta força que os quadros quase caíram da parede.

Fiquei ali parada, com as mãos a tremer e o coração aos pulos, enquanto ouvia os passos dele a afastarem-se pelo corredor. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, misturado com o perfume doce da minha mãe e o aroma amargo do café que nunca chegámos a beber. Era suposto ser mais um almoço de domingo em casa dos meus pais, mas tudo desabou num instante. E agora? Agora sou eu que fico no meio deste campo de batalha, sem saber para que lado me virar.

Tudo começou com uma conversa aparentemente inocente sobre política. O meu pai, o senhor António, sempre foi muito opinativo. O Miguel também não é de ficar calado — aliás, foi isso que me apaixonou nele: aquela coragem de dizer sempre o que pensa. Mas naquele dia, as palavras foram facas. O meu pai chamou-lhe irresponsável, o Miguel respondeu que o meu pai vivia no passado. A minha mãe tentou acalmar as coisas, mas eu já só via rostos vermelhos e punhos cerrados. Quando o Miguel se levantou da mesa e disse que não queria mais ouvir disparates, senti um nó na garganta tão apertado que mal conseguia respirar.

Desde esse dia, tudo mudou cá em casa. O Miguel anda calado, fechado no escritório até tarde. Eu tento puxar conversa ao jantar, mas ele limita-se a responder com monossílabos. Às vezes olho para ele e pergunto-me se ainda somos os mesmos de há dois anos, quando casámos na igreja de São Vicente, rodeados de sorrisos e promessas. Agora só há silêncios e olhares de lado.

A minha mãe liga-me todos os dias. “Filha, não podes deixar que ele te afaste de nós”, diz ela, com aquela voz doce mas firme que sempre usou para me convencer a comer sopa ou estudar para os exames. O meu pai nem quer ouvir falar do Miguel. “Esse rapaz não tem respeito por ninguém!”, repete ele, como se eu fosse surda.

No trabalho também já não sou a mesma. A minha colega Inês percebeu logo que algo se passava. “Estás tão pálida, Mariana… Queres falar?” Mas como é que se explica este vazio? Como é que se conta a alguém que sente que está a perder tudo ao mesmo tempo?

Uma noite, depois de mais um jantar em silêncio, ganhei coragem e sentei-me ao lado do Miguel no sofá.

— Miguel… precisamos de falar.

Ele olhou para mim com olhos cansados.

— Não quero falar sobre os teus pais.

— Mas temos de falar sobre nós! — insisti. — Não podemos continuar assim.

Ele suspirou fundo.

— Mariana, eu amo-te. Mas não vou aturar faltas de respeito do teu pai. Não sou obrigado a ouvir insultos só porque ele acha que tem sempre razão.

— Eu sei… Mas também são os meus pais. Não posso simplesmente cortar relações com eles.

— Então escolhe — disse ele, levantando-se abruptamente. — Ou ficas do lado deles ou do meu.

Fiquei ali sentada, sozinha na sala escura, a ouvir o som do duche na casa de banho. Senti-me uma criança outra vez, perdida entre dois mundos que não se tocam.

Os dias passaram e nada melhorou. O Natal aproximava-se e eu sabia que ia ser um pesadelo. A minha mãe queria organizar tudo como sempre: bacalhau com todos, filhoses e risos à volta da lareira. Mas como é que podia haver Natal sem o Miguel? Ou sem os meus pais?

Na véspera de Natal, sentei-me na cama e chorei baixinho para não acordar o Miguel. Lembrei-me das noites em que adormecia no colo da minha mãe enquanto ela me contava histórias sobre princesas e dragões. Lembrei-me do dia em que o Miguel me pediu em casamento no miradouro da Senhora do Monte — só nós dois e Lisboa inteira aos nossos pés.

No dia seguinte, decidi ir sozinha a casa dos meus pais. A mesa estava posta para quatro, mas só éramos três. O meu pai fingiu não notar a cadeira vazia; a minha mãe serviu-me bacalhau como se nada fosse. Mas eu sentia o peso do silêncio em cada garfada.

— O Miguel não quis vir? — perguntou finalmente o meu pai.

— Ele… ainda está magoado — respondi, baixando os olhos.

A minha mãe pousou a mão na minha.

— Filha, nós só queremos o teu bem. Mas também tens de perceber o nosso lado.

Olhei para eles e senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— E quem é que percebe o meu lado? Eu estou farta de ser o tampão entre vocês! Porque é que ninguém tenta ceder um bocadinho?

O meu pai ficou calado. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dele.

Voltei para casa tarde nessa noite. O Miguel estava à minha espera na sala escura.

— Correu bem? — perguntou ele, sem ironia.

— Não — respondi simplesmente. — Nada disto está a correr bem.

Sentámo-nos lado a lado no sofá, sem nos tocarmos. Senti vontade de fugir dali para sempre.

Nos dias seguintes tentei convencer o Miguel a falar com os meus pais. Tentei convencer os meus pais a pedir desculpa ao Miguel. Ninguém cedeu. Cada um agarrado ao seu orgulho como se fosse um escudo contra a dor.

Comecei a ter insónias. Passava as noites a olhar para o teto, a imaginar como seria a minha vida se nunca tivesse apresentado o Miguel aos meus pais. Ou se tivesse tido coragem de bater com a mão na mesa e obrigar toda a gente a falar abertamente sobre os seus sentimentos.

Um sábado à tarde, fui visitar a minha avó Rosa ao lar onde vive agora. Sempre foi ela quem me ensinou que família é feita de perdão e paciência.

— Minha menina — disse ela, apertando-me as mãos enrugadas — às vezes é preciso deixar o tempo passar para as feridas sararem. Mas não deixes que o orgulho mate o amor.

Chorei no colo dela como quando era pequena.

Na semana seguinte tomei uma decisão: marquei um jantar em nossa casa e convidei os meus pais e o Miguel sem lhes dizer que os outros iam estar presentes. Quando todos chegaram e perceberam o que eu tinha feito, houve um silêncio pesado como chumbo.

— Hoje ninguém sai daqui sem falar — disse eu, com voz trémula mas decidida.

O meu pai olhou para mim como se me visse pela primeira vez. A minha mãe tentou sorrir mas estava nervosa. O Miguel cruzou os braços e ficou calado.

Comecei eu:

— Eu amo-vos a todos. Mas não aguento mais viver assim. Se não conseguirem perdoar-se uns aos outros por mim… então talvez eu tenha de aprender a viver sozinha.

A minha mãe chorou baixinho. O meu pai ficou vermelho mas acabou por dizer:

— Talvez eu tenha exagerado naquele dia… Não gosto de perder discussões, sabes disso Mariana.

O Miguel olhou-o nos olhos pela primeira vez em meses:

— Eu também fui demasiado impulsivo… Só queria ser respeitado como parte da família.

A conversa foi longa e difícil. Houve acusações velhas a virem ao de cima, mágoas antigas misturadas com as novas. Mas pela primeira vez em muito tempo houve honestidade — e talvez um princípio de perdão.

Quando todos foram embora naquela noite, fiquei sozinha na sala vazia e senti um alívio estranho misturado com tristeza.

Será possível reconstruir uma família depois de tantas feridas? Ou há coisas que nunca voltam ao lugar? Talvez nunca saiba as respostas certas… Mas sei que tentei tudo para não perder quem mais amo.