Entre Sombras e Luz: Como a Fé Me Salvou do Abismo
— Não aguento mais, mãe! — gritei, a voz embargada, enquanto as lágrimas me escorriam pelo rosto. O eco da minha própria dor parecia preencher cada canto da cozinha fria, onde o cheiro do café queimado se misturava ao silêncio pesado da madrugada. A minha mãe, Maria do Carmo, olhou-me com olhos cansados, mas cheios de uma preocupação que só as mães sabem ter.
— Filha, por favor… — sussurrou ela, aproximando-se devagar, como se temesse que eu me desfizesse em pedaços a qualquer momento. — Não digas isso. Deus nunca nos abandona.
Mas naquele instante, sentia-me completamente sozinha. O meu pai tinha partido há três meses, vítima de um enfarte fulminante, e desde então a nossa casa em Vila Nova de Gaia parecia mais um túmulo do que um lar. O silêncio era ensurdecedor. O meu irmão mais novo, o Tiago, refugiava-se nos auscultadores e nos jogos online, como se pudesse fugir da dor através de um ecrã. A minha mãe tentava manter-se forte, mas eu via-a chorar baixinho todas as noites.
Eu própria já não sabia quem era. Antes, era a Mariana alegre, estudante de enfermagem, cheia de sonhos e planos. Agora, arrastava-me pelos dias como uma sombra. As aulas pareciam não fazer sentido; os amigos afastaram-se, talvez por não saberem lidar com o meu luto. Só restava o vazio.
Foi numa dessas noites intermináveis que decidi sair de casa. Caminhei sem rumo pelas ruas molhadas pela chuva miudinha do Porto, sentindo o frio entranhar-se nos ossos. Sentei-me num banco do Jardim do Morro e olhei para a ponte iluminada sobre o Douro. Perguntei-me se algum dia voltaria a sentir alegria.
— Mariana? — ouvi uma voz atrás de mim. Era a Inês, colega do curso e uma das poucas pessoas que ainda me mandava mensagens.
— O que fazes aqui a esta hora? — perguntou ela, sentando-se ao meu lado sem esperar resposta.
— Não sei… Preciso de respirar — murmurei.
Ela ficou em silêncio por um momento, depois pousou a mão sobre a minha.
— Sabes… Quando perdi o meu avô, também achei que nunca ia recuperar. Mas foi aí que comecei a rezar outra vez. Não sou muito religiosa, mas… ajudou-me a não me sentir tão sozinha.
Olhei para ela com ceticismo. A fé sempre fora algo distante para mim — uma tradição de família mais do que uma convicção pessoal. Mas naquele momento, agarrada à última réstia de esperança, deixei-me levar pela sugestão da Inês.
Naquela noite, antes de adormecer, fechei os olhos e murmurei uma oração desajeitada:
— Deus… Se estás aí… Ajuda-me. Não sei o que fazer.
Não aconteceu nada de extraordinário. Não ouvi vozes nem senti luzes celestiais. Mas pela primeira vez em meses, consegui dormir sem pesadelos.
Os dias seguintes foram uma luta constante entre a vontade de desistir e o desejo tímido de acreditar que as coisas podiam melhorar. Comecei a ir à missa aos domingos com a minha mãe — mais para lhe fazer companhia do que por convicção própria. Mas aos poucos fui encontrando algum conforto nos cânticos, nas palavras do padre António e nos olhares cúmplices dos vizinhos que também carregavam as suas dores.
O Tiago continuava fechado no seu mundo virtual. Uma noite, ouvi-o chorar no quarto ao lado. Entrei devagarinho e sentei-me na beira da cama.
— Tenho saudades do pai — confessou ele, encolhido sob os lençóis.
— Eu também — respondi, abraçando-o com força. Pela primeira vez desde o funeral, chorámos juntos.
A partir desse dia, começámos a falar mais sobre o pai — sobre as piadas parvas que ele contava ao jantar, sobre os passeios à praia em Matosinhos, sobre como ele dizia sempre que tudo se resolvia “com um bocadinho de fé”.
A fé… Essa palavra começou a ganhar outro significado para mim. Não era uma solução mágica para os problemas, mas uma espécie de âncora quando tudo parecia desmoronar-se.
A Inês continuou ao meu lado. Um dia levou-me a um grupo de jovens da paróquia. Fui contrariada, mas acabei por me surpreender: ali ninguém fingia que estava tudo bem. Partilhavam dúvidas, medos e pequenas vitórias diárias. Senti-me menos alienígena.
Numa dessas reuniões, conheci o Miguel — um rapaz tímido com olhos tristes e um sorriso gentil. Descobri que ele também tinha perdido alguém: a irmã mais velha num acidente de carro. Falávamos durante horas sobre tudo e nada; ríamos das nossas próprias desgraças como quem desafia o destino.
Com o tempo, comecei a perceber que não estava sozinha na minha dor. Cada pessoa carrega as suas cruzes — umas visíveis, outras escondidas atrás de sorrisos forçados.
A minha relação com Deus foi-se transformando lentamente. Já não rezava apenas por desespero; comecei a agradecer pelas pequenas coisas: um raio de sol numa manhã fria, um abraço apertado da minha mãe, uma mensagem inesperada da Inês.
Claro que nem tudo era fácil. Houve discussões em casa — sobretudo quando o dinheiro começou a faltar e a minha mãe teve de aceitar um trabalho extra na limpeza para pagar as contas. O Tiago revoltava-se contra tudo e todos; eu própria sentia raiva do mundo por nos ter tirado o pai tão cedo.
Uma noite, depois de uma discussão acesa sobre dinheiro e responsabilidades, tranquei-me no quarto e chorei até não ter mais forças. Foi então que peguei na Bíblia antiga do meu pai — aquela que ele lia todas as noites antes de dormir — e abri ao acaso:
“O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito abatido.” (Salmo 34:18)
Essas palavras ficaram comigo como um sussurro de esperança.
Pouco tempo depois, recebi uma proposta inesperada: um estágio no hospital local. No início hesitei — tinha medo de não estar pronta para cuidar dos outros quando mal conseguia cuidar de mim própria. Mas aceitei o desafio.
No hospital conheci histórias ainda mais duras do que a minha: mães que perdiam filhos, idosos abandonados pela família, jovens lutando contra doenças incuráveis. E percebi que podia ser útil mesmo na minha fragilidade; às vezes bastava segurar uma mão ou ouvir um desabafo para fazer diferença.
A fé tornou-se então ação: comecei a organizar pequenos grupos de oração no hospital para quem quisesse participar — fossem crentes ou apenas desesperados à procura de consolo.
Aos poucos, fui reconstruindo a minha vida. A dor nunca desapareceu completamente — há dias em que ainda acordo com saudades insuportáveis do meu pai ou com medo do futuro. Mas agora sei que não estou sozinha: tenho Deus comigo, tenho amigos verdadeiros e uma família imperfeita mas cheia de amor.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci no meio da tempestade. Aprendi que pedir ajuda não é sinal de fraqueza; aprendi que a fé pode ser discreta mas poderosa; aprendi que mesmo nas noites mais escuras há sempre uma luz à espera de ser encontrada.
Pergunto-me: quantas pessoas à nossa volta caminham na escuridão sem nunca pedir socorro? E se partilharmos as nossas dores — será que podemos ser luz uns para os outros? Gostava tanto de saber o que pensam…