“Mãe, porque é que o pai fez isto?” – Uma decisão que mudou tudo
— Maria, não compliques. O meu pai sabe o que faz. — A voz do António ecoou pela cozinha, fria e definitiva, enquanto eu apertava o pano de louça com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
— António, são as nossas poupanças! O dinheiro dos miúdos, o que guardámos para a casa nova… Como é que podes simplesmente entregar tudo ao teu pai sem sequer me perguntar? — A minha voz tremeu, mas não cedi. O coração batia-me tão forte que temi que ele ouvisse.
Ele desviou o olhar, como se a minha dor fosse um incómodo menor. — O meu pai precisa. Ele sempre esteve lá por nós. Agora é a nossa vez de ajudar.
Fiquei ali, parada, a ver o homem com quem partilhava a vida transformar-se num estranho. Não era só o dinheiro. Era a confiança, era o respeito. Era a sensação de que, de repente, eu já não tinha voz na minha própria casa.
Naquela noite, não dormi. Oiço ainda hoje o tic-tac do relógio da sala, cada segundo uma martelada na minha cabeça. O António ressonava ao meu lado, alheio ao turbilhão dentro de mim. Levantei-me devagar para não acordar os miúdos e fui até à sala. Sentei-me no sofá e chorei baixinho, com medo que alguém me ouvisse.
No dia seguinte, tentei falar com ele outra vez. — António, precisamos de conversar. Não podemos continuar assim. Eu não consigo viver sem saber se amanhã tenho dinheiro para comprar pão.
Ele suspirou, impaciente. — Maria, já disse que isto é temporário. O meu pai vai investir o dinheiro e depois devolve-nos tudo com juros. Confia em mim.
Mas como confiar quando tudo dentro de mim gritava que algo estava errado? Comecei a reparar em pequenos detalhes: o António chegava mais tarde a casa, evitava olhar-me nos olhos, respondia com monossílabos. Os miúdos sentiam a tensão — a Leonor começou a fazer perguntas à mesa:
— Mãe, porque é que o pai está sempre chateado?
Sorri-lhe como pude, mas por dentro sentia-me a desmoronar.
As semanas passaram e o dinheiro começou a faltar. Tive de pedir ao António para comprar leite e pão. Ele dava-me notas pequenas, contadas, como se eu fosse uma criança irresponsável. Senti-me humilhada.
Uma tarde, fui buscar o Miguel à escola e encontrei a minha sogra à porta do prédio.
— Maria, posso falar contigo? — perguntou ela, com um ar preocupado.
Assenti e subimos juntas. Mal entrámos em casa, ela sentou-se à mesa da cozinha e olhou-me nos olhos.
— Sei o que o António fez. E sei que não foi justo contigo. Mas o meu marido está doente… precisamos daquele dinheiro para pagar tratamentos privados. Não tínhamos outra saída.
Senti uma mistura de raiva e compaixão. — Mas ninguém me disse nada! Eu sou parte desta família também!
Ela baixou os olhos. — Tens razão. Mas às vezes… as decisões difíceis caem sobre quem menos merece.
Nessa noite, confrontei o António mais uma vez.
— Não posso continuar assim! Preciso de saber a verdade toda. O teu pai está doente? O dinheiro vai mesmo voltar?
Ele explodiu:
— Achas que eu queria isto? Achas que gosto de te ver assim? Mas é a minha família! O meu pai sempre foi um homem forte… agora está a definhar! Eu não podia dizer-te porque sabia que ias ficar assim!
— Assim como? Preocupada? Assustada? Com medo de não conseguir dar de comer aos nossos filhos?
Ele calou-se. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dele.
Os dias seguintes foram um nevoeiro de silêncio e tensão. A Leonor adoeceu — febre alta, tosse persistente. Levei-a ao centro de saúde e disseram-me que precisava de um antibiótico caro. Liguei ao António:
— Preciso de dinheiro para a receita da Leonor.
— Não tenho agora… só amanhã quando receber do trabalho.
Senti-me tão impotente que quase desmaiei ali mesmo na farmácia.
Foi nesse momento que percebi: eu tinha deixado de ser dona da minha vida.
Comecei a procurar trabalho — qualquer coisa servia: limpezas, cuidar de idosos, tomar conta de crianças. A minha irmã Rita ajudou-me como pôde:
— Maria, vem cá para casa uns dias. Descansas um pouco e pensas no que queres fazer.
Mas eu não queria fugir. Queria lutar pelo que era meu.
Numa noite chuvosa, sentei-me com o António na sala escura.
— Isto não pode continuar assim. Eu amo-te, mas preciso de respeito. Preciso de saber que posso confiar em ti… e preciso de ter autonomia para cuidar dos nossos filhos.
Ele chorou baixinho:
— Desculpa… Sinto-me tão perdido quanto tu.
A partir daí começámos a reconstruir devagarinho. Fui trabalhar numa pastelaria do bairro; ganhava pouco mas era meu. O António começou a trazer mais dinheiro para casa e prometeu nunca mais tomar decisões importantes sem me ouvir.
O pai dele acabou por falecer meses depois. Nunca recuperámos totalmente as poupanças — mas recuperámos algo mais importante: a confiança um no outro.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres portuguesas já passaram pelo mesmo? Quantas vezes sacrificamos tudo em nome da família? E até onde devemos ir antes de dizermos basta?