“Vocês aproveitam, enquanto nós afundamos em dívidas” – Quando a reforma se torna um campo de batalha familiar
— Mãe, vocês aproveitam a vida, enquanto nós afundamos em dívidas. Não acham que podiam ajudar mais?
As palavras da Inês ecoaram-me nos ouvidos como um trovão. Estava sentada no sofá da sala, com a chávena de chá ainda quente nas mãos, quando o telefone tocou. O tom dela não era de súplica, era de acusação. O meu coração apertou-se imediatamente. Olhei para o António, que lia o jornal ao meu lado, alheio à tempestade que se aproximava.
— Inês, filha, sabes que sempre tentámos ajudar como podemos… — tentei responder, mas ela interrompeu-me.
— Não chega! Vocês vão a jantares, fazem viagens, compram coisas novas… E nós? Eu e o Rui estamos a contar os cêntimos para pagar a creche do Tomás! — A voz dela tremia, entre a raiva e o desespero.
Senti-me pequena. Tão pequena como nunca antes. Depois de quarenta anos a trabalhar como professora primária, a levantar-me todos os dias às sete da manhã, a correr para o autocarro com chuva ou sol, a corrigir testes até tarde… Agora que finalmente tínhamos tempo e algum dinheiro para nós, era egoísmo querer viver um pouco?
O António pousou o jornal e olhou-me nos olhos. Percebeu logo que algo não estava bem. Fiz-lhe sinal para esperar. Do outro lado da linha, Inês chorava baixinho.
— Filha, fala comigo. O que se passa exatamente?
— Estou cansada, mãe. O Rui perdeu horas no trabalho, eu tenho medo de ser despedida… E vocês parecem tão felizes. Sinto-me sozinha nisto tudo.
O silêncio caiu entre nós. Lembrei-me dos tempos em que ela era pequena e vinha para o meu colo pedir colo e consolo. Agora era adulta, mãe também, mas continuava a precisar de mim — só que de outra forma.
Desliguei o telefone com uma promessa: “Vamos falar pessoalmente no domingo.” Mas durante toda a noite não consegui dormir. O António tentou acalmar-me.
— Maria, não podemos carregar o mundo às costas. A nossa reforma é fruto do nosso esforço. Sempre ajudámos a Inês e o Rui quando foi preciso.
— Mas será suficiente? — perguntei-lhe, com lágrimas nos olhos.
No domingo seguinte, a casa encheu-se do cheiro do assado e das vozes das crianças. O Tomás correu para mim assim que entrou, abraçando-me com força. Senti um nó na garganta ao pensar que talvez estivesse a falhar como mãe e avó.
Sentámo-nos à mesa. O Rui estava calado, a Inês olhava para o prato. O António tentou animar a conversa, mas ninguém parecia disposto a sorrir.
— Inês — comecei, com a voz trémula —, quero que saibas que nos preocupamos convosco. Mas também precisamos de cuidar de nós próprios. Não é fácil para nós ver-vos assim.
Ela levantou os olhos e vi neles uma mistura de mágoa e esperança.
— Eu sei, mãe… Só que às vezes sinto que estou a afundar e não tenho para onde me virar.
O Rui finalmente falou:
— Não queremos tirar-vos nada. Só… só precisamos de sentir que não estamos sozinhos nisto.
O António suspirou.
— Se precisarem de ajuda pontual, claro que ajudamos. Mas também temos medo do futuro. E se um dia precisarmos nós?
A conversa tornou-se num desfiar de mágoas antigas: as vezes em que não pudemos dar mais à Inês quando ela era estudante; as férias que nunca fizemos porque poupávamos para ela; as noites em claro quando ela esteve doente; os sacrifícios silenciosos que nunca foram reconhecidos.
No fim do almoço, Inês veio ter comigo à cozinha enquanto eu lavava a loiça.
— Desculpa ter-te falado assim ao telefone… — murmurou.
— Não tens de pedir desculpa por sentires o que sentes — respondi-lhe, abraçando-a. — Mas também tens de perceber que agora é o nosso tempo. Não quero perder-me para ajudar-te a ti… nem perder-te por pensar só em mim.
Ela chorou no meu ombro como quando era criança. Senti-me dividida entre dois mundos: o da mãe incansável e o da mulher cansada.
Nos dias seguintes, as conversas com o António tornaram-se mais frequentes e profundas. Falámos sobre os nossos medos: envelhecer sozinhos, depender dos outros, perder a autonomia. Falámos sobre os sonhos adiados: aquela viagem ao Douro que sempre quisemos fazer; os jantares com amigos; as tardes preguiçosas no jardim.
Mas também falámos sobre a Inês e o Rui: as dificuldades deles, as pressões do trabalho, o medo constante do desemprego e das contas por pagar. Lembrei-me dos meus pais — como eles também tiveram pouco e mesmo assim nunca deixaram de sorrir.
Uma noite, sentei-me à secretária e escrevi uma carta à Inês:
“Filha,
Sei que a vida não é fácil e que sentes o peso do mundo nos ombros. Eu também senti isso muitas vezes. Quero ajudar-te sempre que puder, mas preciso que compreendas que agora preciso cuidar de mim também. Não é egoísmo — é sobrevivência. Amo-te mais do que tudo.”
No fim-de-semana seguinte, entreguei-lhe a carta. Ela leu-a em silêncio e depois abraçou-me com força.
A nossa relação mudou depois disso. Continuámos a ajudar quando podíamos — pagámos um mês extra da creche do Tomás quando foi preciso; levámos as crianças ao parque para dar-lhes algum descanso; ouvimos os desabafos sem julgar.
Mas também aprendemos a dizer “não” quando era demais para nós. Aprendi que ser mãe não significa anular-me completamente. Que posso amar sem me perder.
Hoje olho para trás e vejo todas as versões de mim mesma: a jovem cheia de sonhos; a mãe exausta; a mulher madura à procura de paz; a avó preocupada mas determinada a viver.
Às vezes pergunto-me: será possível encontrar equilíbrio entre cuidar dos outros e cuidar de nós próprios? Ou será sempre uma corda bamba entre culpa e desejo?
E vocês? Já sentiram este dilema? Como encontraram o vosso caminho?