A Carta Inesperada: O Segredo da Minha Família Portuguesa

— Mariana, tens a certeza que queres abrir isto agora? — perguntou Rui, com a voz trémula, enquanto eu segurava o envelope branco nas mãos. O selo dizia “Instituto da Segurança Social – Coimbra”. O nome de Beatriz estava escrito com uma caligrafia apressada, quase nervosa. O meu coração batia tão forte que temi que Rui o ouvisse.

— Rui, já passaram dez anos desde que trouxemos a Beatriz para casa. Não podemos continuar a fugir do passado dela. — respondi, tentando soar mais firme do que me sentia. Ele suspirou e afastou-se para o canto da sala, cruzando os braços.

Abri o envelope com dedos trémulos. Dentro, uma folha dobrada em três. Li em silêncio, os olhos correndo pelas linhas apressadas:

“Prezada família Silva,

Recebemos recentemente um pedido de contacto da mãe biológica da Beatriz. Ela deseja saber se seria possível estabelecer algum tipo de comunicação com a filha.”

As palavras ecoaram na minha cabeça como um trovão. Senti o chão fugir-me dos pés. Rui aproximou-se e tirou-me a carta das mãos.

— Não podemos permitir isto, Mariana! A Beatriz é nossa filha! — exclamou ele, a voz embargada pela raiva e pelo medo.

— Rui, ela tem direito a saber quem é. Não podemos esconder-lhe isto para sempre…

O silêncio caiu pesado entre nós. Lembrei-me do dia em que conhecemos a Beatriz: uma menina de olhos enormes e tristes, sentada num banco do lar, abraçada a um urso de peluche velho. Tinha apenas quatro anos e já conhecia mais solidão do que muitos adultos.

Durante anos tentei ser a mãe perfeita. Fazia bolos ao domingo, levava-a ao parque, ajudava-a nos trabalhos de casa. Mas havia sempre uma sombra nos olhos dela, um vazio que eu não conseguia preencher.

Naquela noite, depois de Beatriz adormecer, sentei-me à mesa da cozinha com Rui. O relógio marcava duas da manhã.

— E se ela quiser ir embora? E se nos culpar por termos escondido isto dela? — sussurrei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Rui pegou na minha mão.

— Mariana, fizemos tudo por ela. Mas não podemos competir com o sangue…

As palavras dele doeram mais do que qualquer bofetada. Fiquei ali sentada, olhando para as nossas mãos entrelaçadas, perguntando-me se algum dia seria suficiente.

No dia seguinte, Beatriz entrou na cozinha enquanto eu preparava o pequeno-almoço.

— Mãe, porque estás tão calada? — perguntou ela, franzindo o sobrolho.

Olhei para ela e vi não só a minha filha, mas também uma jovem à procura de respostas. Decidi contar-lhe tudo.

— Beatriz, recebemos uma carta importante… É sobre a tua mãe biológica.

Ela ficou imóvel durante alguns segundos. Depois, baixou os olhos.

— Ela quer conhecer-me?

Assenti devagar. O silêncio dela era ensurdecedor.

— Eu… não sei o que pensar — murmurou ela. — Sempre me disseste que era amada aqui…

— E és! — interrompi, sentindo o desespero crescer dentro de mim. — És tudo para nós!

Ela levantou-se da mesa e saiu para o jardim sem dizer mais nada. Fiquei ali sentada, sozinha com as minhas dúvidas e medos.

Os dias seguintes foram um tormento. Rui evitava falar sobre o assunto; Beatriz andava distante, fechada no quarto ou ausente nos passeios em família. A casa parecia mais fria, como se um vento gelado tivesse entrado pelas frestas das portas.

Uma noite, ouvi Beatriz chorar baixinho no quarto. Entrei devagar e sentei-me na beira da cama.

— Queres falar sobre isso?

Ela abanou a cabeça, mas depois murmurou:

— Tenho medo de não gostar dela… Ou pior: de gostar mais dela do que de ti.

O meu coração partiu-se em mil pedaços.

— Não tens de escolher, filha. O amor não se divide; multiplica-se.

Ela olhou para mim com os olhos marejados de lágrimas.

— E se ela não me quiser mesmo assim?

Abracei-a com força.

— Então nós estaremos aqui para te segurar, como sempre estivemos.

Depois dessa noite, Beatriz pediu para conhecer a mãe biológica. Rui ficou furioso; disse que estávamos a cometer um erro. Discutimos como nunca antes.

— Mariana, estás a pôr em risco tudo o que construímos! — gritou ele.

— Não é sobre nós! É sobre ela! — respondi, já sem conseguir conter as lágrimas.

Durante dias mal nos falámos. A tensão era insuportável. Até que Rui entrou no quarto de Beatriz e sentou-se ao lado dela.

— Desculpa, filha… Tenho medo de te perder — confessou ele, com a voz embargada.

Beatriz abraçou-o e choraram juntos. Pela primeira vez em semanas senti esperança.

Marcámos o encontro num café discreto em Coimbra. Eu estava tão nervosa que mal consegui comer nesse dia. Quando a mãe biológica entrou — uma mulher magra, de cabelos castanhos presos num coque — percebi imediatamente de onde vinham os olhos tristes da Beatriz.

A conversa foi tensa ao início; ninguém sabia bem o que dizer. Mas aos poucos foram quebrando o gelo: falaram de livros preferidos, de música portuguesa antiga, até dos sonhos para o futuro.

No final do encontro, Beatriz abraçou a mãe biológica e depois correu para os meus braços.

— Obrigada por me deixares conhecer quem sou — sussurrou ela ao meu ouvido.

Voltámos para casa em silêncio, cada um perdido nos seus pensamentos. À noite, sentei-me na varanda e olhei para as estrelas.

Será que algum dia serei suficiente para ela? Ou será que amar significa aceitar que não podemos preencher todos os vazios?

E vocês? Já sentiram medo de perder alguém que amam por algo que não podem controlar?