Milagre em Coimbra: Trigémeos Depois da Tempestade
— Não aguento mais, Miguel! — gritei, com a voz embargada, enquanto as lágrimas me escorriam pelo rosto. O som da chuva a bater nos vidros abafava os meus soluços, mas não conseguia esconder a dor que me consumia por dentro. Miguel aproximou-se, hesitante, com os olhos vermelhos de quem também já chorou demais.
— Ana, por favor… — tentou ele, mas eu afastei-me. — Não me peças para ter esperança outra vez. Não depois de tudo.
Foram três anos de tentativas, três anos de testes negativos, consultas, exames invasivos, e, pior que tudo, duas gravidezes perdidas. A primeira vez foi um choque. A segunda, uma ferida aberta que nunca mais sarou. A minha mãe dizia sempre: “Deus escreve direito por linhas tortas.” Mas eu já não via linhas nenhumas. Só rabiscos e borrões.
A família do Miguel era tradicional, dessas que se sentam à mesa ao domingo e contam histórias antigas. Mas desde que o nosso drama começou, os silêncios tornaram-se mais longos. A mãe dele, Dona Teresa, olhava-me com pena disfarçada de preocupação.
— Já pensaram em adotar? — sugeriu ela uma tarde, enquanto eu ajudava a pôr a mesa.
Senti o olhar dela cravar-se em mim como uma agulha. — Ainda não desisti de tentar — respondi, tentando soar firme. Mas por dentro sentia-me uma falhada.
O Miguel tentava ser forte por nós os dois. Trabalhava horas extra no hospital, mas eu sabia que ele também sofria. Às vezes encontrava-o a olhar para o vazio, com as mãos entrelaçadas como quem reza sem fé.
Naquela noite chuvosa de novembro, sentei-me no chão da casa de banho com mais um teste na mão. Não queria olhar. Não queria acreditar outra vez para depois cair ainda mais fundo. Mas olhei. E vi duas linhas cor-de-rosa.
— Miguel! — gritei, sem saber se ria ou chorava. Ele veio a correr, tropeçando no tapete.
— O quê? O que foi?
Mostrei-lhe o teste. Ele caiu de joelhos ao meu lado e abraçou-me tão forte que quase me faltou o ar.
— Desta vez vai correr bem — sussurrou ele ao meu ouvido.
Os primeiros meses foram um misto de medo e esperança. Cada consulta era um teste à minha coragem. Quando fizemos a primeira ecografia, a médica sorriu de forma estranha.
— Estão preparados para uma surpresa?
Olhei para o Miguel, aflita.
— São três corações a bater aqui — disse ela, apontando para o ecrã.
— Três? — repeti, sem acreditar.
Miguel ficou branco como a parede. Eu ri e chorei ao mesmo tempo. Três bebés. Três milagres depois de tanta dor.
A notícia espalhou-se pela família como fogo em palha seca. Dona Teresa chorou ao telefone. A minha mãe fez promessas à Senhora de Fátima. Os amigos encheram-nos de mensagens e presentes antes do tempo.
Mas a gravidez não foi fácil. Passei semanas internada no Hospital dos Covões por causa do risco de parto prematuro. O Miguel dormia numa cadeira desconfortável ao meu lado todas as noites possíveis.
— Não me deixes sozinha — pedi-lhe uma noite em que as contrações ameaçaram começar cedo demais.
— Nunca te vou deixar — prometeu ele, segurando-me a mão com força.
Os meses arrastaram-se entre exames, sustos e orações sussurradas no escuro do quarto do hospital. Vi mães entrarem e saírem com bebés nos braços enquanto eu contava os dias para chegar às 32 semanas.
Finalmente, numa manhã fria de fevereiro, os trigémeos decidiram que era hora de nascer. O parto foi uma correria de batas verdes e luzes fortes. Ouvi três choros fininhos misturados com o meu próprio choro de alívio.
— São perfeitos — disse o Miguel, com lágrimas nos olhos enquanto me mostrava as fotografias no telemóvel porque eu ainda não os podia ver.
Os bebés ficaram na neonatologia durante semanas. Cada grama ganha era uma vitória celebrada com mensagens para toda a família. Eu passava horas junto às incubadoras, a cantar baixinho canções que a minha avó me ensinou.
Quando finalmente trouxemos o Tomás, a Matilde e o Duarte para casa, parecia mentira. A casa encheu-se de fraldas, biberões e choros desencontrados. As noites tornaram-se longas e os dias curtos demais para tanto amor e tanto cansaço.
A família uniu-se como nunca antes. Dona Teresa vinha todos os dias ajudar com as refeições. A minha mãe ficou connosco durante semanas para me ensinar truques antigos para acalmar bebés inquietos.
Mas nem tudo era perfeito. O cansaço trouxe discussões. Uma noite, depois de horas sem dormir, gritei com o Miguel porque ele tinha comprado as fraldas erradas.
— Não percebes nada disto! — atirei-lhe à cara.
Ele ficou calado durante um longo minuto antes de responder:
— Estamos os dois a aprender… Não te esqueças do que passámos para chegar aqui.
Chorei outra vez, mas desta vez foi de gratidão por ter alguém ao meu lado que não desistiu de nós.
Agora olho para os meus filhos a dormir juntos no berço improvisado na sala e penso em tudo o que perdemos e ganhámos neste caminho tortuoso até à felicidade.
Será que algum dia vou conseguir agradecer verdadeiramente por este milagre? Ou será que continuarei sempre a temer que tudo isto seja apenas um sonho prestes a acabar? E vocês… já sentiram medo de ser felizes depois de tanto sofrimento?