Entre Duas Mães: Um Coração Rasgado Entre o Dever e o Amor
— Não posso acreditar que vais mesmo deixar o Miguel com a tua mãe outra vez! — gritou a minha sogra, Dona Lurdes, enquanto eu tentava acalmar o bebé que chorava no meu colo.
O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma do arroz de pato que vinha da cozinha. Era domingo, e como sempre, a casa da sogra estava cheia de vozes, pratos a tilintar e olhares de julgamento. O Ricardo, meu marido, estava sentado no sofá, olhos fixos na televisão, fingindo não ouvir a discussão.
— A minha mãe só quer ajudar — tentei explicar, mas a voz saiu-me trémula. — Eu preciso de descansar um pouco…
— Descansar? — Dona Lurdes interrompeu-me, com aquele tom cortante que me fazia sentir uma criança outra vez. — Quando eu tive os meus filhos, nunca precisei de ninguém para me ajudar. E olha para eles agora! — apontou para o Ricardo, como se ele fosse um troféu de resiliência.
O Miguel chorava mais alto. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as. Não podia mostrar fraqueza. Não ali.
A minha mãe, Dona Amélia, era diferente. Quando eu ia a casa dela, era recebida com chá de camomila e palavras doces, mas também com conselhos não pedidos e críticas veladas ao Ricardo.
— Filha, tu mereces mais — dizia ela baixinho, enquanto embalava o Miguel nos braços. — Ele não te ajuda em nada. Vê lá se não te perdes nesta vida…
Eu sentia-me como uma corda esticada entre duas mulheres fortes, cada uma puxando para seu lado. O Ricardo, perdido entre as expectativas da mãe e as minhas necessidades, fechava-se cada vez mais no seu mundo silencioso.
As noites eram longas. O Miguel acordava de duas em duas horas e eu já nem sabia se chorava por fome ou por sentir a tensão no ar. O dinheiro começava a faltar. O Ricardo tinha perdido o emprego na fábrica e eu estava de licença de maternidade. As contas acumulavam-se na gaveta da cozinha: luz, água, renda.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro e sobre quem ia ficar com o Miguel para eu poder dormir duas horas seguidas, sentei-me no chão da casa de banho e chorei em silêncio. Senti-me sozinha como nunca antes.
No dia seguinte, a minha mãe apareceu sem avisar.
— Vim buscar-te — disse ela, determinada. — Tu e o Miguel vêm passar uns dias comigo. Precisas de descansar.
O Ricardo olhou para mim como se eu fosse uma traidora.
— Vais mesmo deixá-lo aqui sozinho? — perguntou ele, magoado.
— Preciso de respirar — respondi num fio de voz.
Na casa da minha mãe, tudo parecia mais calmo. Mas à noite, quando o Miguel finalmente adormecia, eu ficava acordada a pensar no Ricardo. Sentia falta dele, mas também sentia raiva por ele não lutar por nós.
Uma tarde, Dona Lurdes apareceu à porta da minha mãe sem avisar.
— Vim buscar o meu neto — disse ela, sem olhar para mim.
A discussão que se seguiu foi digna de novela portuguesa. As duas mulheres atiravam acusações uma à outra: quem era melhor avó, quem ajudava mais, quem sabia cuidar melhor do Miguel.
Eu fiquei ali no meio, muda, com o coração aos pulos. O Miguel começou a chorar e eu só queria desaparecer.
Depois desse dia, percebi que não podia continuar assim. Voltei para casa com o Miguel nos braços e sentei-me à mesa com o Ricardo.
— Não aguento mais — disse-lhe. — Ou nos unimos ou vamos perder-nos de vez.
Ele olhou para mim com olhos cansados.
— Eu também estou perdido — confessou. — Sinto que nunca sou suficiente para ti… nem para a minha mãe.
Ficámos em silêncio durante muito tempo. Depois começámos a falar: sobre os nossos medos, as nossas falhas, as nossas mães. Chorámos juntos pela primeira vez desde que o Miguel nasceu.
Decidimos procurar ajuda. Fomos ao centro de saúde falar com a enfermeira Graça, que nos encaminhou para um grupo de apoio a jovens pais em dificuldades. Lá conheci outras mulheres como eu: cansadas, divididas entre expectativas impossíveis e sonhos adiados.
Aos poucos, comecei a recuperar a minha voz. Aprendi a dizer não à minha mãe quando ela queria controlar tudo. Aprendi a impor limites à Dona Lurdes quando ela tentava decidir por mim.
O Ricardo arranjou um trabalho temporário numa padaria e eu comecei a fazer bolos para vender na escola do bairro. O dinheiro continuava curto, mas sentíamo-nos mais unidos.
As discussões não desapareceram por magia. Houve dias em que pensei em desistir de tudo e fugir para longe. Mas havia também dias bons: domingos em que cozinhávamos juntos, risos do Miguel a encherem a casa, pequenas vitórias que nos faziam acreditar que era possível recomeçar.
No primeiro aniversário do Miguel, reunimos as duas famílias cá em casa. Foi um caos: Dona Lurdes reclamou do bolo (muito seco), Dona Amélia criticou o presente do Ricardo (pouco prático). Mas pela primeira vez consegui rir-me das pequenas guerras delas e agradecer por ainda estarmos todos juntos.
Hoje olho para trás e vejo como quase me perdi ao tentar agradar a todos menos a mim própria. Ainda tenho medo de falhar como mãe ou como mulher. Mas aprendi que só posso ser boa para os outros se for boa para mim primeiro.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas entre as vozes das mães e das sogras? Quantas conseguem encontrar espaço para ouvir o seu próprio coração? E vocês? Já sentiram este aperto no peito de tentar ser tudo para todos?