Um Mês Para Partir: A Decisão da Minha Sogra

— Não quero mais desculpas, Inês. Tens um mês para sair desta casa.

As palavras de Dona Carminda ecoaram pela cozinha, cortando o ar como uma faca afiada. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se ao sabor amargo da humilhação que me subia à garganta. Olhei para ela, tentando encontrar nos seus olhos alguma compaixão, mas só vi frieza. O meu marido, Maurício, estava sentado à mesa, calado, com as mãos a tremer sobre o jornal.

— Mãe, por favor… — murmurou ele, sem coragem de me olhar.

— Não há mais conversa, Maurício. Já chega de desrespeito nesta casa. — Ela virou-me as costas e saiu, deixando-me ali, sozinha com o homem que eu pensava que me protegeria.

A minha cabeça girava. Como é que tudo tinha chegado a este ponto? Quando casei com Maurício, há três anos, achei que a vida finalmente me sorria. Vinha de uma família humilde de Setúbal e nunca tive grandes luxos, mas sempre sonhei com uma casa cheia de gente, risos e partilhas. Maurício era o oposto: filho único de uma família tradicional de Lisboa, habituado a tudo do bom e do melhor. Quando nos apaixonámos, pensei que o amor venceria todas as diferenças.

No início, Dona Carminda parecia aceitar-me. Dizia que eu era trabalhadora e que fazia bem ao filho. Mas depois do casamento, tudo mudou. Pequenas críticas aqui e ali — sobre a minha maneira de cozinhar, sobre a minha roupa, sobre o meu sotaque — foram crescendo até se tornarem em discussões diárias. Maurício tentava apaziguar as coisas, mas nunca se impunha verdadeiramente.

Naquela manhã, depois do ultimato da sogra, sentei-me no quarto e chorei baixinho. Oiço passos no corredor; era Maurício.

— Inês… desculpa… eu não sei o que fazer… — disse ele, sentando-se ao meu lado.

— Não sabes? Ou não queres saber? — respondi, sentindo a raiva crescer dentro de mim.

Ele baixou os olhos. — A minha mãe está nervosa… desde que o meu pai morreu ela ficou diferente…

— E eu? Eu não conto? — perguntei, a voz embargada. — Eu larguei tudo por ti! Deixei a minha cidade, a minha família…

Maurício não respondeu. Ficámos em silêncio até ouvirmos Dona Carminda bater à porta.

— Não quero barulho! E não te esqueças do prazo, Inês.

Os dias seguintes foram um tormento. Cada refeição era um campo de batalha silencioso. Dona Carminda fazia questão de me ignorar ou lançar olhares reprovadores sempre que eu entrava na sala. Comecei a sentir-me uma estranha na minha própria casa.

Uma noite, ouvi-a ao telefone com alguém:

— Ela não é daqui, nunca será uma de nós… O Maurício não percebe… Se o pai dele visse isto…

Senti um aperto no peito. Será que nunca seria suficiente? Será que o amor não bastava?

Comecei a procurar quartos para alugar em Lisboa. O dinheiro era pouco; o meu trabalho como auxiliar numa escola primária mal dava para as despesas. Falei com a minha mãe ao telefone:

— Filha, volta para casa… Não tens de passar por isso.

Mas eu não queria desistir. Não queria dar razão à sogra nem perder Maurício.

Uma tarde, cheguei mais cedo do trabalho e ouvi vozes exaltadas na sala.

— Mãe, não podes fazer isto! — gritava Maurício.

— Posso e faço! Esta casa é minha! E enquanto cá viveres vais seguir as minhas regras!

— Mas eu amo-a! — respondeu ele, quase a chorar.

— O amor não paga contas nem lava pratos! Ela só te vai arrastar para baixo!

Entrei na sala sem bater.

— Dona Carminda, eu não sou um peso para ninguém! Trabalho todos os dias! Nunca pedi nada a si!

Ela olhou-me com desprezo.

— Não pedieste? E quem é que anda a pagar as contas desta casa? O meu filho! E tu só sabes chorar e fazer-te de vítima!

Maurício levantou-se e agarrou-me na mão.

— Vamos embora daqui, Inês. Já chega.

Mas Dona Carminda riu-se.

— Vais para onde? Achas que consegues viver sem mim? Achas que ela te vai dar o conforto que sempre tiveste?

Maurício hesitou. Senti-o vacilar e largar lentamente a minha mão.

Nessa noite dormi sozinha. Ele ficou na sala até tarde, perdido nos seus pensamentos. No dia seguinte saiu cedo e não voltou para almoçar. Senti-me invisível.

O prazo de um mês estava quase a acabar quando descobri um segredo que mudou tudo. Estava a arrumar umas caixas antigas na arrecadação quando encontrei cartas escondidas numa gaveta. Eram do pai de Maurício para uma mulher chamada Teresa. Li uma das cartas:

“Minha querida Teresa,
Nunca poderei assumir-te publicamente, mas és o amor da minha vida…”

O choque foi tanto que quase deixei cair as cartas ao chão. O pai de Maurício tinha uma amante? Será por isso que Dona Carminda era tão amarga?

Esperei até à noite para confrontá-la.

— Dona Carminda… posso falar consigo?

Ela olhou-me desconfiada.

— O que queres agora?

Mostrei-lhe as cartas.

Ela empalideceu.

— Onde encontraste isso?

— Na arrecadação… Eu não sabia…

Ela sentou-se pesadamente na cadeira da cozinha e começou a chorar baixinho.

— Ele destruiu-me… — murmurou ela. — Aguentei tudo calada por causa do Maurício… Nunca quis que ele soubesse…

Senti pena dela pela primeira vez. Toda aquela raiva vinha da dor e do medo de perder o filho para outra mulher — tal como perdera o marido para outra.

— Eu não quero tirar-lhe o seu filho — disse-lhe suavemente. — Só quero ser feliz com ele.

Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez sem ódio.

— Eu só tenho o Maurício… Se ele te escolher a ti… fico sozinha neste mundo…

Nesse momento percebi: ninguém ganha numa guerra destas. Todos perdemos alguma coisa.

Quando contei tudo a Maurício, ele ficou em choque.

— A minha mãe sofreu tanto… E eu nunca percebi nada…

Decidimos procurar ajuda juntos: terapia familiar. Não foi fácil; houve gritos, lágrimas e silêncios pesados. Mas aos poucos fomos reconstruindo pontes.

No final daquele mês fatídico, já não precisei sair de casa. Mas nada ficou igual: aprendi que as famílias são feitas de segredos e dores escondidas; que o orgulho pode destruir mais do que qualquer inimigo externo; e que às vezes amar alguém é também saber perdoar quem nos magoa.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias se destroem por falta de diálogo? Quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? E vocês — já passaram por algo assim?