Herança Amarga: Entre o Amor, a Ganância e o Perdão

— Mariana, tu não percebes? Eles nunca vão aceitar isto! — gritou o meu irmão Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha, tão forte que o café quase saltou da chávena.

Eu olhava para ele, sentindo o peso do testamento da Dona Amélia a esmagar-me o peito. A casa amarela no centro de Sintra, com os seus azulejos antigos e o jardim de camélias, agora era nossa. Mas a família dela, os Costa, estavam furiosos. E eu? Eu só queria paz.

Tudo começou numa manhã chuvosa de março. O telefone tocou cedo demais. Era o advogado da Dona Amélia, a nossa vizinha de toda a vida. Ela tinha partido durante a noite, sozinha, como sempre viveu. Fui chamada ao escritório para ouvir o testamento. O meu marido, Miguel, ficou em casa com os miúdos, enquanto eu atravessava as ruas molhadas, sentindo um frio estranho na barriga.

— Dona Mariana, a senhora foi nomeada herdeira universal da Dona Amélia — disse o advogado, sem rodeios.

Fiquei sem palavras. A casa dela era lendária no bairro — todos sabiam que valia uma fortuna. Mas porquê eu? E os Costa? Sempre achei que ela tinha uma relação próxima com eles.

Quando cheguei a casa, Miguel estava à janela, ansioso.

— Então?

— Miguel… ela deixou-nos tudo. A casa. O terreno. Tudo.

Ele ficou em silêncio, depois sorriu, mas vi nos olhos dele um brilho estranho — medo misturado com excitação.

No dia seguinte, os Costa apareceram à nossa porta. Primeiro veio a Teresa, filha mais velha da Dona Amélia. Trazia os olhos vermelhos de chorar e uma raiva contida na voz.

— Mariana, isto não pode ser verdade. A minha mãe nunca faria isto! Tu… tu fizeste-lhe alguma coisa?

Senti-me ofendida e magoada. Sempre ajudei Dona Amélia com as compras, levei-lhe sopa quando estava doente. Nunca pedi nada em troca.

— Teresa, juro-te pela minha vida, eu não pedi nada. Nem sabia do testamento.

Ela virou costas sem dizer mais nada. Mas os boatos começaram logo no café do bairro. Diziam que eu tinha manipulado Dona Amélia, que tinha aproveitado a solidão dela para me apoderar da casa. Até a minha mãe me ligou:

— Mariana, filha… tens a certeza que não te meteste em sarilhos?

As semanas seguintes foram um inferno. Os Costa contrataram um advogado para contestar o testamento. Recebi cartas ameaçadoras e até anónimos na caixa do correio: “Ladrões!” “A ganância paga-se cara!”

Miguel começou a perder noites de sono.

— Isto vai acabar mal, Mariana. Devíamos abdicar da casa.

Mas abdicar? Depois de tudo o que passámos? O nosso apartamento era pequeno demais para os nossos três filhos. Aquela casa podia mudar as nossas vidas.

O Rui, o meu irmão, também se meteu ao barulho:

— Tu sempre foste a preferida da Dona Amélia! Mas não penses que vais ficar com tudo sozinha!

A minha família começou a dividir-se. A minha irmã mais nova deixou de falar comigo. No Natal, ninguém quis vir cá a casa.

Uma noite, sentei-me no jardim da casa nova — ainda cheirava às flores da Dona Amélia — e chorei como uma criança. Senti-me sozinha no mundo.

No tribunal, os Costa tentaram provar que Dona Amélia não estava em pleno juízo quando fez o testamento. Chamaram testemunhas, inventaram histórias sobre mim. Fui humilhada em público.

No meio disto tudo, os meus filhos começaram a sofrer na escola. Chamavam-lhes “filhos de ladrões”. O Miguel afastou-se de mim; passava horas fora de casa para evitar discussões.

Um dia, encontrei a Teresa sentada no banco do jardim em frente à casa.

— Mariana… — disse ela baixinho — Eu só queria perceber porquê. Porque é que ela fez isto?

Sentei-me ao lado dela e contei-lhe tudo: como Dona Amélia me confidenciava as suas mágoas, como se sentia sozinha desde que o marido morreu e os filhos se afastaram por causa de discussões antigas sobre dinheiro.

— Ela só queria alguém que lhe desse atenção — disse eu — Não era pelo dinheiro.

A Teresa chorou baixinho e eu abracei-a. Pela primeira vez em meses senti compaixão em vez de raiva.

O processo arrastou-se durante dois anos. No fim, o tribunal manteve o testamento. A casa ficou nossa — mas à custa de quê? Perdi amigos, parte da família e quase perdi o meu casamento.

Hoje vivo naquela casa enorme com Miguel e os miúdos. O jardim está bonito outra vez, mas há dias em que sinto um vazio impossível de preencher. Os Costa mudaram-se para longe; nunca mais falámos.

Às vezes pergunto-me: valeu a pena? O que é mais importante — justiça ou paz? Será que algum dia conseguirei perdoar-me por tudo isto?