Quando o Meu Marido Escolheu a Mãe: Um Retrato de Solidão e Coragem
— Mariana, não podes continuar a insistir nisto. A minha mãe precisa de mim! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de cansaço e frustração.
Senti o peito apertar-se, como se alguém me tivesse arrancado o ar. Já não sabia se chorava de raiva ou de tristeza. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite e, mais uma vez, estávamos ali, de pé, frente a frente, como dois estranhos que partilham uma casa mas não uma vida.
— E eu? — perguntei, a voz quase sumida. — Eu não preciso de ti?
O Rui desviou o olhar, fixando-se na mesa onde ainda estavam os restos do jantar que ninguém tocou. O silêncio dele era mais cruel do que qualquer palavra. Sabia que, no fundo, ele já tinha escolhido. Só eu é que ainda não queria aceitar.
A mãe do Rui, Dona Amélia, sempre foi uma presença constante — e sufocante — nas nossas vidas. Desde o início do namoro que ela fazia questão de lembrar que “o Rui é o meu menino”. No início, achei graça. Era sinal de carinho, pensei. Mas com o tempo percebi que era mais do que isso: era posse.
Quando casámos, ela fez questão de nos dar um apartamento no prédio dela, em Benfica. “Assim estamos sempre perto”, disse com um sorriso doce. O Rui achou prático. Eu senti um frio na espinha. Mas cedi — como cedi tantas vezes.
Os anos passaram e a Dona Amélia foi-se infiltrando em tudo: nas nossas rotinas, nas nossas decisões, até nas nossas discussões. Se discutíamos por causa das contas ou da educação da nossa filha, a Inês, ela aparecia sempre com uma opinião pronta e uma solução que favorecia o Rui. “O Rui trabalha tanto, Mariana. Tens de compreender.”
Lembro-me de um Natal em particular. A Inês tinha cinco anos e queria montar a árvore comigo. Mas a Dona Amélia apareceu com uma árvore nova, enorme, cheia de luzes e fitas douradas. “Assim fica mais bonito para o Rui”, disse ela, ignorando completamente os enfeites feitos pela Inês na escola.
— Mãe, eu queria pôr as minhas estrelas… — murmurou a Inês, com os olhos marejados.
— Depois pões, querida — disse eu, tentando sorrir. Mas por dentro sentia-me invisível.
Com o tempo, comecei a sentir-me uma hóspede na minha própria casa. O Rui chegava tarde do trabalho e ia logo ver se a mãe precisava de alguma coisa. Se eu me queixava, ele dizia: “A minha mãe está sozinha desde que o meu pai morreu. Não percebes?”
Percebia. Percebia demasiado bem. Mas quem percebia de mim?
As discussões tornaram-se rotina. Uma noite, depois de mais uma discussão sobre a Dona Amélia ter entrado em casa sem avisar para “arrumar” o nosso quarto (e remexer nas minhas gavetas), explodi:
— Isto não é normal! Não quero viver assim!
O Rui olhou para mim como se eu fosse uma criança birrenta.
— Mariana, ela só quer ajudar. És tu que complicas tudo.
Senti-me tão sozinha naquele momento que tive vontade de fugir. Mas fiquei — por medo, por hábito, pela Inês.
Até ao dia em que adoeci. Uma gripe forte deixou-me de cama durante dias. O Rui continuou a ir trabalhar e passava as noites em casa da mãe porque “ela também está constipada”. A Dona Amélia apareceu duas vezes para me trazer chá — e para dizer que devia ter mais cuidado com as correntes de ar.
Foi a minha irmã, a Joana, quem ficou comigo e cuidou da Inês nesses dias. Uma noite, enquanto me ajudava a levantar da cama para ir à casa de banho, disse-me:
— Mariana, tu não vives… sobrevives.
Chorei nos braços dela como há muito não chorava.
Quando melhorei, decidi falar com o Rui seriamente. Preparei tudo: escrevi num papel o que queria dizer para não me perder na emoção.
— Rui, precisamos de ajuda — comecei, com as mãos a tremer. — Isto não é saudável para ninguém. Nem para nós, nem para a tua mãe, nem para a Inês.
Ele suspirou fundo.
— Mariana… eu não posso abandonar a minha mãe agora.
— E eu? Vais abandonar-me a mim?
Ele ficou calado muito tempo antes de responder:
— Eu nunca te pedi para escolheres entre mim e a tua família.
— Mas tu obrigas-me todos os dias a escolher entre nós e a tua mãe!
A discussão terminou como sempre: com ele a sair porta fora e eu a chorar sozinha na cozinha.
Nessa noite não dormi. Fiquei sentada na sala escura a ouvir os sons do prédio: passos no corredor, vozes distantes dos vizinhos, o elevador velho a ranger. Senti-me tão pequena…
No dia seguinte fui trabalhar como um autómato. Os colegas perguntaram se estava tudo bem e sorri como sempre sorria: “Está tudo ótimo”.
Mas por dentro estava a desmoronar.
Comecei a procurar ajuda: falei com uma psicóloga do centro de saúde e comecei a escrever num diário tudo o que sentia. Aos poucos fui percebendo que não era egoísmo querer ser feliz; era necessidade.
A Inês começou a perguntar porque é que o pai passava tanto tempo com a avó e tão pouco connosco.
— Ele gosta mais dela do que de nós? — perguntou-me um dia, com aqueles olhos grandes e tristes.
Abracei-a com força.
— Não é isso, filha… O pai só não sabe dividir o coração dele.
Mas sabia que estava a mentir-lhe — e isso doía mais do que tudo.
Um domingo à tarde decidi sair só com a Inês. Fomos ao Jardim da Estrela ver os patos e comer gelado. Rimos tanto nesse dia… Senti-me viva outra vez.
Quando voltámos, o Rui estava à porta do prédio à espera.
— Onde estavam? A minha mãe ficou preocupada!
Respirei fundo antes de responder:
— Estávamos só as duas. Precisávamos disso.
Ele olhou para mim como se eu tivesse cometido um crime.
— Mariana… isto não pode continuar assim.
— Pois não — respondi eu. — Não pode mesmo.
Nessa noite tomei uma decisão: ia procurar um apartamento só para mim e para a Inês. Falei com a Joana e ela ajudou-me a encontrar um T2 pequeno em Campo de Ourique. Quando contei ao Rui, ele ficou em choque.
— Vais mesmo fazer isto?
— Vou. Preciso de respirar, Rui. Preciso de ser feliz — disse-lhe com lágrimas nos olhos.
Ele tentou convencer-me a ficar; prometeu mudar; disse que ia falar com a mãe… Mas já era tarde demais. Eu já tinha mudado por dentro.
No dia em que saímos do apartamento da Dona Amélia, senti medo — mas também alívio. A Inês abraçou-me forte e disse:
— Agora somos só nós duas?
Sorri-lhe através das lágrimas:
— Somos nós duas… mas nunca estaremos sozinhas.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde então. Não foi fácil: houve noites em que chorei até adormecer; houve dias em que duvidei de tudo; houve momentos em que quase voltei atrás. Mas aprendi que às vezes é preciso perder tudo para nos encontrarmos.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas ao medo de desiludir os outros? Quantas sacrificam os seus sonhos pelo conforto dos outros? E vocês? Já sentiram esse vazio? O que fariam no meu lugar?