“Não concordei com a minha mãe e agora toda a família me vê como a ovelha negra” – A difícil vida de ser a irmã mais velha de gémeos
— Não aguento mais, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto as lágrimas ameaçavam cair. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. O meu pai olhou-me de lado, como se eu tivesse acabado de insultar alguém na missa. Os meus irmãos gémeos, o Tiago e o Tomás, pararam de brincar e ficaram a olhar para mim com aqueles olhos grandes, cheios de espanto e talvez um pouco de medo.
A minha mãe pousou o pano da loiça na bancada e virou-se para mim, com aquele olhar cansado que sempre me fazia sentir culpada antes mesmo de abrir a boca.
— O que é que te deu agora, Mariana? — perguntou, tentando manter a voz calma, mas eu conhecia-a demasiado bem para não perceber o nervosismo por trás das palavras.
Respirei fundo. Tinha ensaiado este momento tantas vezes na minha cabeça, mas agora que estava ali, sentia-me pequena, frágil, como se estivesse prestes a ser esmagada pelo peso da família.
— Eu só queria… só queria que olhasses para mim de vez em quando. Que reparasses que eu existo! — a voz saiu-me trémula, mas não recuei. — Desde que o Tiago e o Tomás nasceram, parece que deixei de contar. Tudo é para eles. Tudo gira à volta deles!
O meu pai bufou e abanou a cabeça.
— Mariana, não digas disparates. És a irmã mais velha, tens de dar o exemplo.
— O exemplo de quê? De ser invisível? — atirei, já sem conseguir controlar as lágrimas.
A minha mãe aproximou-se e tentou tocar-me no braço, mas eu recuei.
— Mariana, tu sabes que te amamos — disse ela, mas as palavras soaram ocas. — Só tens de perceber que os teus irmãos ainda são pequenos…
— Pequenos? Mãe, eles já têm dez anos! Eu tenho dezassete! Há sete anos que sou só a irmã mais velha. A babysitter. A filha que tira boas notas porque sim. Nunca perguntaste como é que eu estou! Nunca quiseste saber dos meus problemas!
O Tiago começou a chorar baixinho e o Tomás agarrou-lhe na mão. Senti-me horrível por os magoar, mas naquele momento só conseguia pensar em mim. Pela primeira vez em anos, estava a dizer aquilo tudo em voz alta.
A minha avó entrou na cozinha nesse instante, atraída pelo barulho.
— Que gritaria é esta? — perguntou, olhando para mim como se eu fosse um bicho raro.
— A Mariana está com os dramas dela outra vez — disse o meu pai, encolhendo os ombros.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim.
— Não são dramas! Eu só quero ser ouvida!
A minha avó abanou a cabeça e murmurou algo sobre a juventude de hoje não saber dar valor ao que tem. Senti-me ainda mais sozinha.
Corri para o meu quarto e fechei a porta com força. Sentei-me na cama e abracei as pernas ao peito. Oiço os passos apressados da minha mãe no corredor, mas ela não bate à porta. Ninguém bate à porta. Ninguém nunca bateu à porta do meu quarto.
Lembro-me de quando era pequena e a minha mãe me fazia tranças antes da escola. Lembro-me das histórias antes de dormir e dos bolos ao domingo à tarde. Mas depois vieram os gémeos e tudo mudou. Deixei de ser filha para ser ajudante. Deixei de ser criança para ser responsável.
Na escola, os professores elogiavam-me por ser tão madura para a idade. Os vizinhos diziam à minha mãe que eu era uma menina exemplar. Mas ninguém via as noites em que chorava sozinha porque sentia falta de um abraço ou de um simples “estou orgulhosa de ti”.
Oiço vozes na cozinha. Estão a falar de mim. Sei que estão sempre a falar de mim quando acham que não ouço:
— A Mariana anda muito estranha ultimamente…
— É só uma fase da adolescência…
— Ela devia era ajudar mais em casa…
Mas ninguém pergunta porque é que ando estranha. Ninguém quer saber o que se passa comigo.
No dia seguinte, acordo cedo e vou para a escola sem tomar pequeno-almoço. A minha mãe está na cozinha com os gémeos, a preparar as lancheiras deles. Olha para mim por cima do ombro, mas não diz nada. Eu também não digo nada.
Na escola, sinto-me um pouco melhor. A minha melhor amiga, a Sofia, percebe-me sem eu ter de explicar tudo.
— Outra vez problemas em casa? — pergunta ela enquanto caminhamos pelo corredor.
Encolho os ombros.
— Eles acham que sou ingrata só porque quero atenção.
Sofia abraça-me.
— Não és ingrata. És humana.
À tarde, quando chego a casa, encontro o Tiago sentado nas escadas com ar triste.
— Desculpa por ontem — diz ele baixinho.
Sento-me ao lado dele e passo-lhe o braço pelos ombros.
— Não tens culpa nenhuma, Tiago. Só estou cansada de sentir que não conto para nada aqui em casa.
Ele encosta-se a mim e ficamos ali em silêncio durante uns minutos. Pela primeira vez em muito tempo, sinto uma pontinha de ternura pelos meus irmãos. Eles também não pediram para estar no meio disto tudo.
À noite, durante o jantar, reina um silêncio estranho à mesa. O meu pai finge ler as notícias no telemóvel; a minha mãe serve sopa sem me olhar nos olhos; os gémeos trocam olhares nervosos.
De repente, a minha mãe pousa a colher e olha para mim:
— Mariana… podemos falar depois do jantar?
O meu coração dispara no peito. Aceno com a cabeça.
Quando finalmente nos sentamos no sofá da sala, ela respira fundo antes de começar:
— Sei que tens razão em algumas coisas do que disseste ontem… — começa ela devagarinho. — Mas também tens de perceber que ser mãe não é fácil. Às vezes sinto que estou a falhar convosco todos os dias.
Olho para ela e vejo lágrimas nos olhos dela pela primeira vez em muitos anos.
— Eu só queria sentir que sou importante para ti — digo baixinho.
Ela segura-me nas mãos e aperta-as com força.
— És importante. Sempre foste. Só… às vezes deixo-me levar pelo cansaço e pelas preocupações com os teus irmãos…
Ficamos ali abraçadas durante uns minutos longos e silenciosos. Sinto um alívio estranho misturado com tristeza: nada vai mudar da noite para o dia, mas pelo menos fui ouvida.
Nos dias seguintes, noto pequenas mudanças: um bilhete deixado na mochila com um “gosto muito de ti”, um convite para ir ao cinema só nós as duas… Mas também noto olhares reprovadores do meu pai e comentários da minha avó:
— Agora andas muito sensível…
— Isso são modernices…
Sinto-me dividida entre o alívio por finalmente ter dito o que sentia e o peso de ser vista como a ovelha negra da família. Os meus irmãos continuam a procurar-me para brincar ou pedir ajuda nos trabalhos da escola; a minha mãe esforça-se por estar mais presente; mas o resto da família parece olhar para mim como se eu fosse ingrata ou egoísta.
Pergunto-me muitas vezes se fiz bem em falar ou se teria sido mais fácil continuar calada e invisível. Mas depois lembro-me daquela noite no sofá com a minha mãe e penso: talvez seja preciso coragem para sermos vistos tal como somos.
E vocês? Já sentiram que precisavam gritar para serem ouvidos na vossa própria casa? Será errado querer ser vista quando todos parecem olhar apenas para os outros?