Chamam-me Todos os Dias Para Saber da Minha Saúde: Mas Será Só Pela Herança?
— Mãe, está tudo bem contigo? — pergunta a voz apressada do Nuno ao telefone, enquanto ouço ao fundo o barulho de talheres e risos de crianças.
— Está, filho. Está tudo igual — respondo, tentando não deixar transparecer a tristeza que me invade. Sei que ele só ligou porque a irmã lhe lembrou. Sei que a pressa dele não é só do trabalho, mas também de não querer ouvir o silêncio da minha casa.
Desligo e fico a olhar para a chávena de chá já fria. O relógio marca 18h12. Oiço o vento a bater nas portadas e lembro-me dos tempos em que esta casa era cheia de vozes, de correrias, de discussões e gargalhadas. Agora, só o tique-taque do relógio me faz companhia.
Quando o António me deixou, há mais de trinta anos, fiquei sozinha com três filhos pequenos. Ele disse-me: “Lídia, não nasci para isto. Não quero esta vida.” E foi-se embora sem olhar para trás. Lembro-me de chorar noites inteiras, com medo de não conseguir dar-lhes tudo o que precisavam. Trabalhei em dois empregos, fiz serões a costurar para vizinhas, vendi bolos na feira. Tudo para que nunca lhes faltasse nada.
A Leonor era a mais velha, sempre tão responsável. O Nuno era o do meio, rebelde e calado. O Tiago, o mais novo, era o meu raio de sol — sempre com um sorriso pronto, mesmo quando eu chegava a casa exausta. Agora são adultos, cada um com a sua vida. E eu? Fiquei com as memórias e com esta casa grande demais para uma só pessoa.
No domingo passado foi o meu aniversário. Esperei por eles desde manhã cedo. Preparei o bolo de laranja que todos adoravam em pequenos. Pus a mesa com a toalha bonita e as chávenas de porcelana que eram da minha mãe. Às três da tarde, ligou a Leonor:
— Mãe, desculpa, não vamos conseguir ir hoje. O Pedro está doente e tenho de ficar com ele.
— Claro, filha. Não faz mal — menti.
O Nuno mandou mensagem: “Parabéns mãe! Depois ligo.” O Tiago nem isso.
Sentei-me à mesa sozinha, cortei uma fatia de bolo e olhei para as cadeiras vazias. Senti uma dor funda no peito — não era só tristeza, era uma espécie de vergonha por ter criado filhos tão distantes.
Na segunda-feira, recebi uma chamada do Tiago:
— Mãe, como estás? Precisas de alguma coisa?
— Não, filho. Está tudo bem.
— Olha… já pensaste em vender a casa? É tão grande para ti sozinha. Podias ir para um apartamento mais pequeno, ficavas com dinheiro para ti…
Senti um nó na garganta. Não era a primeira vez que falavam nisso. A Leonor também já tinha sugerido: “Mãe, devias pensar no teu futuro.” Mas eu sei o que querem dizer realmente: querem saber o que vai acontecer à casa quando eu já cá não estiver.
Às vezes penso se sou injusta por pensar assim dos meus próprios filhos. Mas depois lembro-me das conversas apressadas, das visitas cada vez mais raras, das perguntas sobre papéis e contas bancárias.
Uma tarde destas, fui ao café da Dona Emília. Ela olhou para mim com pena:
— Então, Lídia? Os teus meninos não te vêm visitar?
— Estão ocupados — respondi.
Ela abanou a cabeça:
— Hoje em dia é assim… Quando precisam da mãe estão sempre presentes, depois esquecem-se.
Fiquei a pensar nas palavras dela enquanto voltava para casa devagarinho. Passei pelo parque onde costumava levar os miúdos a brincar. As árvores continuam lá, mas os risos desapareceram.
À noite, sentei-me na sala escura e peguei numa caixa de cartas antigas. Cartas do António quando ainda éramos namorados; desenhos dos miúdos; postais de férias em Vila Nova de Milfontes. Senti saudades de tudo o que já fui — mulher amada, mãe indispensável, pilar da família.
Agora sou só uma voz ao telefone.
Na semana passada tive uma tontura forte e caí na cozinha. Fiquei no chão uns minutos antes de conseguir levantar-me. Não contei a ninguém. Para quê preocupar os miúdos? Se calhar até agradeciam saber que estava mais perto do fim — penso nestes pensamentos feios e depois sinto-me horrível por isso.
No sábado seguinte, a Leonor apareceu sem avisar:
— Mãe! Estás bem? Pareces cansada…
— Estou só um bocadinho tonta — admiti.
Ela olhou em volta:
— Esta casa precisa de obras… Já pensaste mesmo em vender?
Respirei fundo:
— Leonor… Porque é que insistes tanto nisso?
Ela ficou vermelha:
— Não é por mim! É por ti! Não vês que estás sozinha aqui?
— Sozinha estou eu em qualquer lado se vocês não vierem cá — respondi sem conseguir conter as lágrimas.
Ela ficou calada uns segundos e depois abraçou-me. Mas senti que era um abraço cheio de culpa e não de amor.
Os dias passam devagar. Às vezes penso em ligar-lhes eu, mas depois lembro-me das conversas apressadas e desisto. Oiço vizinhos a rir no prédio ao lado e pergunto-me se algum dia voltarei a sentir aquela alegria simples de ter família à volta da mesa.
Outro dia fui ao médico e ele perguntou se tinha apoio em casa. Disse-lhe que sim — menti outra vez. Não quero ser um peso para ninguém.
À noite sonho com os meus filhos pequenos outra vez: vejo-os correr pelo corredor, ouço-os chamar por mim quando têm pesadelos. Acordo com lágrimas nos olhos e um vazio no peito.
Sei que um dia vou partir e esta casa vai ficar para eles dividirem como quiserem. Pergunto-me se algum dia vão perceber tudo o que fiz por eles; se vão sentir falta da mãe ou só da herança.
Será egoísmo querer mais do que telefonemas apressados? Será pedir demais querer sentir-me amada enquanto ainda cá estou?
E vocês… também sentem este vazio? Ou sou só eu?