O Dia em que Levei a Minha Mãe ao Lar: O Olhar Dela Ainda Me Persegue

— Não vás, filha. Por favor, não me deixes aqui.

As palavras da minha mãe ecoaram pelo corredor frio do Lar Nossa Senhora da Esperança, misturando-se ao cheiro de desinfetante e à luz pálida do fim da tarde. Eu segurava a mala dela com tanta força que os meus dedos ficaram brancos. O olhar dela — aquele olhar suplicante, quase infantil — ficou gravado em mim como uma queimadura.

Nunca pensei que este dia chegasse. Sempre imaginei que conseguiria cuidar dela em casa, como prometi ao meu pai antes dele morrer. Mas a vida não é feita de promessas fáceis. O meu nome é Teresa, tenho 42 anos, sou mãe de dois filhos adolescentes e trabalho como enfermeira no Hospital de Santa Maria. A minha vida é uma correria constante entre turnos, compras, trabalhos de casa e discussões com o meu marido, o João, que ultimamente parece mais um colega de quarto do que um companheiro.

A minha mãe, a Dona Amélia, sempre foi uma mulher difícil. Cresci a ouvir críticas: “Teresa, não sabes fazer nada direito!”, “Olha para ti, sempre distraída!”. Quando era pequena, sonhava fugir de casa, ser independente, viver sem aquela voz constante a apontar-me defeitos. Mas agora, ao vê-la ali tão frágil, com as mãos trémulas e os olhos marejados de lágrimas, senti uma dor que nunca tinha sentido antes.

— Mãe, eu… eu não consigo mais sozinha. Preciso de ajuda. Aqui vais estar bem cuidada — tentei explicar, mas a minha voz saiu trémula.

Ela virou o rosto para a janela. Lá fora, um grupo de idosos jogava cartas sob a sombra de uma oliveira. O silêncio entre nós era tão pesado que quase me sufocava.

— Achas mesmo que isto é vida? — murmurou ela, sem me olhar.

Fiquei ali parada, sem saber o que dizer. Lembrei-me das noites em claro quando ela começou a esquecer-se das coisas: o gás ligado, as chaves perdidas, o nome dos netos trocado. Lembrei-me do dia em que a encontrei caída na casa de banho, o sangue a escorrer-lhe da testa. E lembrei-me do João a dizer-me:

— Teresa, não podemos continuar assim. Os miúdos precisam de ti. Eu preciso de ti.

Mas será que alguém precisava mais de mim do que ela?

No carro, a caminho de casa, chorei como há muito não chorava. Senti-me uma traidora. Uma filha ingrata. Mas também senti alívio — um alívio sujo, vergonhoso.

Quando cheguei a casa, os meus filhos estavam agarrados aos telemóveis. O João nem sequer perguntou como correu. Fui para o quarto e fechei-me lá dentro. Olhei para o espelho e vi uma mulher cansada, com olheiras fundas e o cabelo desgrenhado.

Na manhã seguinte, liguei para o lar para saber como estava a minha mãe. A enfermeira disse-me:

— A Dona Amélia está um pouco triste, mas é normal nos primeiros dias. Quer que venha visitá-la?

Fiquei paralisada. Não sabia se tinha coragem para enfrentar aquele olhar outra vez.

Os dias passaram e fui adiando a visita. Arranjava desculpas: “Hoje tenho turno duplo”, “Os miúdos têm testes”, “O João está doente”. Mas no fundo era medo — medo do julgamento dela e do meu próprio.

Uma noite, sonhei com ela: estava sentada na cozinha da nossa velha casa em Setúbal, a fazer arroz doce como fazia nos Natais da minha infância. Sorriu-me e disse:

— Sabes que te amo, não sabes?

Acordei com lágrimas nos olhos e uma decisão tomada: ia vê-la no dia seguinte.

Quando cheguei ao lar, ela estava sentada sozinha no jardim, a olhar para as flores murchas. Parecia mais pequena do que nunca.

— Olá, mãe — disse eu, sentando-me ao lado dela.

Ela olhou para mim sem sorrir.

— Vieste ver se ainda estou viva?

Senti um nó na garganta.

— Vim porque tenho saudades tuas.

Ela suspirou e olhou para as mãos.

— Sabes… quando eras pequena eu também me sentia sozinha. O teu pai trabalhava muito e eu ficava aqui presa contigo e com os meus pensamentos. Às vezes gritava contigo porque não sabia fazer melhor.

Ficámos em silêncio durante uns minutos. Depois ela disse:

— Não te culpes tanto. A vida é assim mesmo: cheia de escolhas difíceis.

Abracei-a com força e senti as lágrimas dela molharem-me o ombro.

Desde esse dia comecei a visitá-la todas as semanas. Levo-lhe bolos caseiros e fotografias dos netos. Às vezes conversamos sobre o passado; outras vezes ficamos só em silêncio, de mãos dadas.

Mas há noites em que ainda acordo sobressaltada com aquele olhar dela no corredor do lar — um olhar entre o medo e a esperança.

Será que algum dia vou perdoar-me por tê-la deixado ali? Ou será que há decisões na vida que nunca deixam de nos assombrar?