Tudo Nas Minhas Costas: A História da Filha Que Sempre Teve de Ser Forte
— Outra vez tu, Mariana? Não tens mesmo nada melhor para fazer do que controlar a vida dos outros? — O tom do meu irmão, Rui, ecoou pela cozinha, carregado de desprezo. Eu estava de pé, com as mãos ainda molhadas de lavar a loiça, o olhar fixo na janela embaciada pela chuva de novembro.
Respirei fundo. Não era a primeira vez que ouvia aquela frase. Nem seria a última. Desde que o pai morreu, há quase dez anos, parecia que o mundo inteiro tinha decidido que eu era feita de ferro. Que eu aguentava tudo. Que eu não precisava de colo, nem de descanso, nem sequer de um simples “obrigada”.
A minha mãe, sentada à mesa, olhava para o vazio. Os olhos dela, outrora vivos e brilhantes, estavam agora baços, perdidos num tempo em que talvez tivesse sido feliz. O cancro tinha-lhe roubado a energia e parte da memória. Mas nunca lhe roubou o favoritismo pelo Rui.
— Mariana, deixa lá o teu irmão em paz — murmurou ela, quase sem força.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. O Rui vinha uma vez por mês, se tanto. Chegava sempre tarde, com pressa de ir embora. Trazia flores baratas e um sorriso falso. Depois desaparecia outra vez para o seu apartamento no centro de Lisboa, para a namorada nova e para os jantares com amigos importantes.
Eu ficava. Sempre fiquei. Fui eu que levei a minha mãe às consultas, que lhe dei banho quando ela já não conseguia levantar-se sozinha, que lhe limpei as lágrimas e as feridas. Fui eu que pus a minha vida em pausa — adiei o mestrado, terminei um namoro de anos porque “não era altura”, recusei um emprego em Coimbra porque “a mãe precisa de ti”.
Mas ninguém parecia ver isso. Ninguém agradecia. Pelo contrário: era como se fosse minha obrigação natural.
— Rui, não é controlar — tentei explicar, com a voz trémula — É só que a mãe precisa de mais ajuda. Eu não consigo fazer tudo sozinha.
Ele encolheu os ombros.
— Eu tenho uma vida, Mariana. Não posso largar tudo por causa dela. Tu é que sempre foste a certinha da família.
Aquela frase ficou-me atravessada na garganta como um espinho. “Certinha da família”. Como se ser responsável fosse um defeito. Como se cuidar fosse uma fraqueza.
Depois do jantar, enquanto limpava os restos de sopa da toalha manchada, ouvi a porta bater. O Rui já tinha ido embora. A minha mãe adormeceu no sofá, com a televisão ligada num volume demasiado alto. Sentei-me ao lado dela e olhei para as mãos — tão parecidas com as dela — e perguntei-me: quando foi que deixei de ser filha para ser cuidadora?
Lembrei-me da infância: dos natais em casa dos avós em Santarém, das tardes em que jogávamos às cartas na varanda. Lembrei-me também das vezes em que caí e chorei e ouvi sempre o mesmo: “Não sejas piegas, Mariana! Tu és forte!” O Rui podia fazer birras, partir brinquedos, gritar com a mãe — ela corria sempre para ele. Eu? Eu tinha de engolir as lágrimas e seguir em frente.
A adolescência foi igual: ele saía à noite e chegava tarde; eu ficava em casa a estudar ou ajudava nas tarefas. Quando tirei 19 no exame nacional de Português, ouvi um “Que bom” distraído. Quando o Rui passou à tangente no 12º ano, houve festa e jantar especial.
Agora, adulta, percebo que nunca deixei de tentar merecer aquele olhar orgulhoso da minha mãe — um olhar que ela reservava só para o meu irmão.
Os dias passaram lentos e pesados. A doença da minha mãe avançava depressa demais para os meus braços cansados acompanharem. Os médicos diziam que era uma questão de tempo. O Rui continuava ausente: “Não posso ir esta semana”, “Tenho uma reunião importante”, “A Marta está doente”.
Uma noite, depois de dar banho à minha mãe — ela já mal falava — sentei-me no chão da casa de banho e chorei como há muito não chorava. Chorei por mim, pela infância roubada, pelo amor nunca recebido na mesma medida. Chorei pela raiva que sentia do meu irmão e pela culpa por sentir essa raiva.
No dia seguinte, decidi ligar-lhe.
— Rui, preciso mesmo que venhas cá. Não consigo mais sozinha.
Do outro lado ouvi um suspiro impaciente.
— Mariana… já falámos sobre isto. Eu ajudo como posso. Não me peças mais do que isso.
— Não é justo! — gritei sem me reconhecer — Não é justo que tudo caia sempre sobre mim! Porque é que nunca és tu?
Silêncio.
— Porque tu deixas — respondeu ele finalmente, numa voz fria.
Fiquei sem palavras. Era verdade? Era eu quem permitia? Era eu quem aceitava sempre ser o pilar?
Os dias seguintes foram um borrão de cansaço e mágoa. A minha mãe piorou subitamente numa manhã cinzenta de fevereiro. Estive ao lado dela até ao último suspiro — segurei-lhe a mão até ficar fria e pálida.
O Rui chegou tarde demais para se despedir.
No funeral, todos vieram dar-me palmadinhas nas costas: “Foste uma filha exemplar”, “A tua mãe teve sorte em ter-te”. O Rui chorou alto ao lado do caixão; eu fiquei calada, seca por dentro.
Depois disso, fiquei sozinha na casa vazia dos meus pais. O silêncio pesava mais do que qualquer responsabilidade anterior. O Rui veio buscar algumas coisas da mãe — fotografias antigas, uma caixa de joias — e foi embora sem olhar para trás.
Durante semanas vivi num limbo entre o alívio e o vazio. Pela primeira vez em anos não havia ninguém a quem cuidar — mas também ninguém para cuidar de mim.
Comecei lentamente a reconstruir-me: voltei a estudar à noite, arranjei um trabalho numa livraria perto do bairro onde cresci. Fiz novos amigos, tentei perdoar o meu irmão (e a minha mãe) por nunca terem visto o meu esforço.
Mas há noites em que acordo sobressaltada com aquela pergunta: será que valeu a pena sacrificar tanto? Será que alguma vez serei capaz de pôr os meus limites antes dos outros? E vocês — até onde iriam pelo amor da vossa família?