Entre a Fé e o Silêncio: Como a Oração Salvou o Meu Lar
“Por favor, não me deixes agora, mãe…”, sussurrei, com a voz embargada, enquanto segurava a mão fria da Dona Anabela. O cheiro do hospital misturava-se ao perfume leve de lavanda que ela sempre usava. O monitor cardíaco marcava o ritmo da nossa angústia. O meu irmão, Rui, estava encostado à parede, braços cruzados, olhar perdido no chão. O silêncio entre nós era tão pesado quanto as palavras que não conseguíamos dizer.
Foi tudo tão rápido. Naquela manhã, Dona Anabela tinha preparado o pequeno-almoço como sempre: pão fresco da padaria do Sr. Joaquim, café forte e um sorriso cansado. Mas, ao meio-dia, caiu na cozinha. O som do corpo dela a bater no chão ecoa ainda na minha cabeça. Liguei para o INEM com as mãos a tremer, enquanto o Rui gritava: “Faz qualquer coisa, Mariana!”
No hospital de Santa Maria, os médicos diziam pouco. “Vamos aguardar as próximas horas”, repetiam. Eu sentia-me perdida. O meu pai, António, estava ausente há meses — desde que saiu de casa para viver com outra mulher em Setúbal. A família estava partida e agora parecia prestes a desmoronar de vez.
Na sala de espera, o Rui explodiu:
— Isto é tudo culpa tua! Se não estivesses sempre a discutir com ela…
— Eu? Tu é que nunca estás em casa! — respondi, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
A nossa avó, Dona Rosa, entrou na sala nesse momento. Trazia consigo um terço antigo e uma expressão serena que contrastava com o caos à nossa volta.
— Meus filhos, agora não é hora de culpas. É hora de rezar.
Eu nunca fui muito religiosa. Mas naquela noite, ajoelhei-me ao lado da cama da minha mãe e rezei como nunca antes. Pedi a Deus que não me tirasse a única pessoa que ainda me fazia sentir em casa. Pedi perdão pelas palavras duras, pelas portas batidas, pelos silêncios prolongados.
As horas arrastaram-se. O Rui adormeceu numa cadeira dura; eu continuei a rezar em silêncio. Lembrei-me das noites em que Dona Anabela me embalava ao som das suas canções antigas do fado, dos domingos em família à mesa farta, das discussões sobre política e dos abraços apertados depois das tempestades.
Na manhã seguinte, o médico entrou com um sorriso discreto:
— A sua mãe está estável. Vai precisar de tempo e cuidados, mas vai recuperar.
Senti as pernas fraquejarem. Chorei de alívio e agradeci baixinho — não só a Deus, mas também à minha avó por me lembrar da força da oração.
Mas os problemas não acabaram ali. A doença da minha mãe trouxe à tona todas as feridas escondidas: as dívidas acumuladas desde que o meu pai saiu; o ressentimento entre mim e o Rui; a solidão da Dona Rosa, que tentava manter-nos unidos com bolos de laranja e conselhos sábios.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem ficaria com a mãe no hospital, sentei-me na varanda com a avó.
— Sabes, Mariana — disse ela —, quando o teu avô morreu eu também achei que não ia aguentar. Mas foi na fé que encontrei força para continuar.
— Mas como é que se acredita quando tudo parece tão injusto?
Ela sorriu e apertou-me a mão.
— Não se trata de entender tudo. Trata-se de confiar que há algo maior do que nós.
Comecei a ir à missa aos domingos com ela. Não porque acreditasse cegamente, mas porque precisava de um lugar onde pudesse chorar sem vergonha e pedir forças para mais um dia. O padre Manuel falava sobre perdão e recomeço. Aos poucos, fui perdoando o meu pai — mesmo sem conseguir falar-lhe — e tentei reaproximar-me do Rui.
Certa tarde, enquanto ajudávamos a Dona Anabela a levantar-se da cama, o Rui olhou-me nos olhos pela primeira vez em meses.
— Desculpa por tudo o que disse naquela noite…
— Eu também disse coisas horríveis…
Abraçámo-nos ali mesmo, entre lençóis lavados e cheiro a desinfetante.
A recuperação da minha mãe foi lenta. Houve dias em que pensei desistir: quando as contas se acumulavam na caixa do correio; quando o telefone tocava e era o banco a ameaçar penhoras; quando via os olhos tristes da minha mãe ao lembrar-se do meu pai.
Mas havia também pequenos milagres: vizinhos que traziam sopa quente; colegas do trabalho que faziam vaquinhas para ajudar nas despesas; desconhecidos na igreja que rezavam por nós sem nos conhecerem.
A fé não resolveu todos os problemas — mas deu-me coragem para enfrentá-los. A oração tornou-se o meu refúgio nos dias maus e uma celebração nos dias bons.
Hoje, sento-me à mesa com a minha família reconstruída: Dona Anabela mais frágil mas sorridente; Rui mais presente; Dona Rosa com os seus bolos e histórias; até o meu pai apareceu no Natal passado para pedir desculpa e tentar reaproximar-se.
Às vezes pergunto-me: teria conseguido atravessar esta tempestade sem fé? E vocês, já sentiram esse vazio que só uma oração sincera consegue preencher?