A Última Carta de David: Entre a Traição e o Perdão
— Não me digas que vais sair outra vez, David! — gritei-lhe da cozinha, com as mãos ainda molhadas do detergente. O som da porta a bater foi a única resposta. Fiquei ali, parada, com o coração aos pulos, a olhar para o chão de azulejo frio. A nossa filha, Leonor, apareceu à porta da cozinha, os olhos grandes e assustados.
— A mãe está bem? — perguntou ela, baixinho.
Sorri-lhe, tentando esconder o nó na garganta. — Estou, querida. Vai fazer os trabalhos de casa, sim?
Ela assentiu e desapareceu pelo corredor. Sentei-me à mesa, sozinha, a ouvir o eco dos meus próprios pensamentos. Era sempre assim nos últimos meses: discussões abafadas, silêncios pesados, olhares que evitavam encontrar-se. O David já não era o mesmo homem por quem me apaixonei naquela noite de São João, há quase vinte anos atrás, quando dançámos juntos na praça da aldeia e ele me prometeu o mundo.
Mas nada me preparou para o que viria depois.
O acidente aconteceu numa manhã chuvosa de novembro. O telefone tocou às sete e meia. Do outro lado, uma voz formal: “É do Hospital de São José. O seu marido sofreu um acidente de viação.”
O resto desse dia é um borrão de lágrimas, corredores brancos e cheiro a desinfetante. O David partiu sem se despedir. Fiquei sozinha com a Leonor e um vazio impossível de preencher.
Os dias seguintes foram um desfile de vizinhos bem-intencionados, familiares distantes e burocracias sem fim. Só quando tudo acalmou é que encontrei a carta. Estava escondida no fundo da gaveta do David, junto com uma pequena caixa de madeira que nunca tinha visto antes.
A carta começava assim:
“Querida Inês,
Se estás a ler isto é porque já não estou aí para te explicar tudo cara a cara. Peço-te que me perdoes por tudo o que vais descobrir.”
As mãos tremiam-me tanto que mal conseguia continuar. Dentro da caixa estavam fotografias antigas — algumas com pessoas que eu não conhecia — e um envelope dirigido a uma tal de Marta.
Continuei a ler:
“Há muitos anos atrás, antes de te conhecer, tive uma relação com alguém que nunca te falei. O destino voltou a cruzar-nos há uns tempos. Não te traí fisicamente, mas menti-te por omissão. A Marta é mãe do meu filho, o Miguel.”
O chão fugiu-me dos pés. Um filho? Fora do nosso casamento? Senti-me traída, enganada, ridícula por nunca ter desconfiado de nada.
Nos dias seguintes, vivi como um fantasma. A Leonor percebia que algo estava errado, mas eu não conseguia falar. A minha mãe veio cá a casa e encontrou-me sentada no sofá, com os olhos vermelhos.
— Inês, tens de reagir. A Leonor precisa de ti.
— Não percebes, mãe… Ele tinha outro filho! E nunca me disse nada! — gritei-lhe, incapaz de conter a raiva.
Ela sentou-se ao meu lado e apertou-me as mãos.
— O David amava-te. Isso não muda com os erros dele. Mas agora tens de decidir se queres viver presa ao passado ou se vais perdoar.
As palavras dela ficaram-me a ecoar na cabeça durante dias.
Decidi procurar a Marta. Encontrei-a através das redes sociais — morava em Setúbal, não muito longe de nós. Mandei-lhe uma mensagem curta: “Sou a Inês, mulher do David. Precisamos de falar.”
Marcámos encontro num café discreto à beira-rio. Quando cheguei, ela já lá estava: uma mulher elegante, olhar cansado mas firme.
— Obrigada por ter vindo — disse eu, sem saber bem por onde começar.
Ela assentiu. — O David falou-me muito de ti e da Leonor. Nunca quis interferir na vossa vida.
— Porque é que ele nunca me contou? — perguntei, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair outra vez.
— Ele tinha medo de te perder — respondeu ela simplesmente. — E também tinha medo de perder o Miguel. Achava que podia proteger-vos a todos…
Ficámos ali sentadas durante horas. Descobri que o Miguel tinha quinze anos e sabia quem era o pai, mas nunca tinha tido contacto comigo ou com a Leonor. Senti uma mistura estranha de raiva e compaixão pela Marta — ela também vivera anos em silêncio.
Quando voltei para casa nessa noite, encontrei a Leonor sentada na cama do pai, abraçada à almofada dele.
— Mãe… porque é que estás tão triste? — perguntou ela.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a com força.
— O pai tinha segredos… Segredos que nos magoaram. Mas ele amava-nos muito.
Ela ficou em silêncio durante um tempo e depois disse:
— Eu também tenho saudades dele.
Naquela noite não dormi. Pensei em tudo: nas mentiras do David, na dor da Marta, na inocência da Leonor e do Miguel. Pensei em mim própria — na mulher que fui durante todos aqueles anos de casamento, na confiança cega que tive nele.
No dia seguinte liguei à Marta e pedi para conhecer o Miguel. Ela hesitou mas acabou por aceitar. Quando o vi pela primeira vez, senti um aperto no peito: era igual ao David em pequeno, com os mesmos olhos castanhos e sorriso tímido.
A Leonor ficou nervosa mas curiosa; os dois trocaram olhares desconfiados ao início, mas depois começaram a falar sobre música e videojogos como se fossem amigos de sempre.
Ao ver os dois juntos percebi que podia escolher entre alimentar o ressentimento ou tentar construir algo novo para todos nós.
Os meses passaram devagarinho. Fui à terapia; chorei muito; zanguei-me ainda mais vezes; perdoei aos poucos — não ao David, mas a mim própria por ter acreditado num conto de fadas impossível.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente: mais forte, mais realista, menos ingénua talvez… mas ainda capaz de amar e de acreditar nas pessoas.
Às vezes pergunto-me: será que algum dia conhecemos verdadeiramente quem está ao nosso lado? Ou será que todos temos segredos capazes de abalar tudo aquilo em que acreditamos?
E vocês? Acham que o amor pode mesmo perdoar tudo?