À Sombra do Almoço: O Preço da Confiança

— Ó Rui, podes adiantar-me o almoço hoje? Esqueci-me da carteira em casa, pá. — A voz do Nuno soou apressada, quase ansiosa, enquanto tirava o capacete e pousava a lancheira vazia na mesa do refeitório.

Olhei para ele, hesitante. Já não era a primeira vez que me pedia dinheiro emprestado, mas sempre devolvera, ainda que com algum atraso. O relógio marcava 13h02 e eu sentia o estômago a dar voltas depois de uma manhã infernal na linha de montagem. Os outros colegas já se sentavam, riam alto, e o cheiro da sopa de feijão misturava-se com o do óleo das máquinas.

— Claro, Nuno. Não há problema — respondi, tentando sorrir. Tirei a carteira do bolso do casaco azul da empresa e paguei duas refeições na caixa. Ele agradeceu com um aceno rápido e sentou-se ao meu lado, já de olhos postos no telemóvel.

Enquanto comíamos, tentei puxar conversa:

— Então, como está a tua filha? Já recuperou da gripe?

— Sim, sim… — murmurou, sem levantar os olhos do ecrã. — Olha, desculpa, tenho de responder aqui a uma coisa.

O resto do almoço passou em silêncio. Senti-me desconfortável, mas tentei convencer-me de que era só cansaço. No final do turno, Nuno saiu apressado, nem sequer se despediu.

No dia seguinte, procurei-o logo de manhã:

— Nuno, olha lá… Sobre o almoço de ontem…

Ele interrompeu-me:

— Eh pá, Rui, hoje não dá mesmo para te pagar. A minha mulher ficou sem trabalho e estamos apertados. Para a semana compenso-te, prometo.

Assenti, sentindo um nó na garganta. Não era pelo dinheiro — eram uns míseros oito euros — mas pela forma como me olhou: como se eu fosse inconveniente por lhe lembrar a dívida.

Os dias passaram. Nuno começou a evitar-me. No refeitório sentava-se noutro canto, rodeado por outros colegas. Ouvi rumores: diziam que ele andava a pedir dinheiro a mais gente. Senti-me envergonhado por ter sido ingénuo.

Em casa, a minha mulher percebeu logo que algo não estava bem.

— O que se passa contigo? Andas tão calado…

— Nada… Coisas do trabalho.

Ela insistiu até eu contar tudo. Ficou furiosa:

— Tens de aprender a dizer não! As pessoas abusam da tua bondade. Olha para nós: também não andamos folgados!

Tinha razão. O salário mal chegava para as contas e para as despesas dos miúdos. Mas sempre fui assim: incapaz de negar ajuda a quem me pede.

No domingo seguinte, durante o almoço de família em casa dos meus pais, desabafei com o meu pai.

— Sabes, Rui — disse ele, pousando o garfo — quando eu trabalhava nos estaleiros havia sempre um chico-esperto pronto a aproveitar-se dos outros. Mas aprendi: confiança é como vidro — parte-se fácil e nunca volta ao mesmo.

As palavras dele ficaram-me na cabeça durante dias.

Na segunda-feira seguinte, Nuno aproximou-se finalmente de mim no balneário.

— Olha lá… Sei que ficaste chateado comigo. Desculpa lá qualquer coisa. Mas isto anda mesmo complicado em casa…

Olhei-o nos olhos:

— Nuno, não é pelo dinheiro. É pela confiança. Eu ajudei-te porque pensei que éramos amigos.

Ele encolheu os ombros:

— Cada um faz o que pode para se safar…

Nesse momento percebi: para algumas pessoas, amizade é só uma palavra bonita quando lhes convém.

A partir daí mudei. Tornei-me mais reservado no trabalho. Passei a almoçar sozinho ou com colegas em quem confiava há anos. Alguns repararam na mudança:

— Estás diferente, Rui…

— Aprendi à força — respondi — que nem toda a gente merece a nossa confiança.

O ambiente no trabalho ficou mais frio. Senti falta das conversas animadas à hora do almoço, mas também percebi que estava mais protegido.

Certa tarde, o chefe chamou-me ao gabinete:

— Rui, tenho reparado que tens estado mais calado ultimamente. Está tudo bem?

Hesitei antes de responder:

— Está… Só ando mais atento a quem confio.

Ele assentiu com compreensão:

— Às vezes é preciso. Mas não deixes que te roubem a tua essência.

Saí dali pensativo. Será que estava a tornar-me amargo? Ou era apenas uma defesa necessária?

No Natal desse ano, recebi um postal anónimo no cacifo: “Desculpa por ter abusado da tua confiança. Espero que consigas perdoar.” Não tinha assinatura, mas reconheci a letra do Nuno.

Sorri tristemente. Oito euros não mudaram a minha vida — mas mudaram-me a mim.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos de ser quem somos por medo de sermos magoados outra vez? Vale mesmo a pena fechar o coração por causa de uma desilusão? E vocês, já passaram por algo assim? Como reagiram?