Troquei o meu lar por promessas: agora, só o silêncio me faz companhia
— Mãe, tens mesmo a certeza que queres fazer isto? — perguntou a minha filha Ana, com aquela voz doce, mas já impaciente, enquanto olhava para o telemóvel.
Eu olhei para ela, para o meu filho Miguel e para a minha nora Sofia, todos sentados à volta da mesa da sala. O relógio marcava quase nove da noite, mas ninguém parecia com vontade de prolongar aquela conversa. O apartamento estava cheio de caixas e sacos, como se a minha vida estivesse ali, empacotada e pronta para ser despachada.
— Tenho, filha. Já não preciso de tanto espaço. Vocês precisam mais do que eu. — respondi, tentando sorrir, mas sentindo um nó na garganta.
Durante trinta anos vivi naquele T3 em Benfica. Era o nosso lar. As paredes guardavam risos de crianças, discussões de adolescentes, festas de aniversário, lágrimas e abraços. Da janela da cozinha via-se o Tejo ao longe e, nas manhãs de domingo, o cheiro do café misturava-se com o som dos pardais no parapeito.
Quando o meu marido morreu, há seis anos, o silêncio tornou-se mais pesado. Mas eu nunca me senti verdadeiramente sozinha: havia sempre visitas dos meus filhos e dos meus netos. O Miguel vinha buscar-me para almoçar ao domingo; a Ana ligava-me todos os dias. Ou assim era antes.
A vida deles mudou. O Miguel perdeu o emprego e teve de voltar para casa com a Sofia e os dois meninos. A Ana separou-se do marido e ficou com a pequena Matilde num T1 minúsculo em Odivelas. Eu via-os a lutar todos os dias e sentia-me impotente.
Foi então que decidi: vendia o apartamento grande e comprava um T1 para mim. Com o resto do dinheiro ajudava os dois. Era um sacrifício, mas era o que uma mãe faz.
— Não tens de fazer isto por nós — disse o Miguel, mas vi nos olhos dele um alívio disfarçado.
Assinei os papéis com as mãos a tremer. No dia da mudança, sentei-me no chão do novo apartamento — pequeno, frio, paredes brancas ainda sem quadros — e chorei baixinho. Mas repeti para mim mesma: fizeste o certo.
No início, as visitas eram frequentes. A Ana vinha com a Matilde aos sábados; o Miguel trazia os meninos para lanchar depois da escola. Eu fazia bolos, contava histórias, enchia a casa de risos.
Mas as visitas começaram a rarear. Primeiro foi a Ana: “Mãe, esta semana não dá mesmo… muito trabalho.” Depois o Miguel: “Os miúdos têm futebol… fica para a próxima.”
Os telefonemas tornaram-se mais curtos. As mensagens menos frequentes. Passei a ver os meus netos só em fotografias no Facebook.
Uma tarde de inverno, sentei-me à janela com uma chávena de chá nas mãos geladas. Olhei para a rua vazia e perguntei-me: será que fiz bem? Troquei tudo por eles e agora nem tempo têm para mim.
No Natal desse ano, preparei tudo como sempre: rabanadas, bacalhau, sonhos. Esperei até às oito da noite. Liguei à Ana:
— Mãe… desculpa… vamos jantar com os pais do Pedro este ano…
O Miguel mandou mensagem: “Os miúdos estão doentes… fica para outro dia.”
Jantei sozinha. O relógio marcava dez da noite quando lavei a última travessa.
No dia seguinte fui ao café da esquina. O senhor António, viúvo como eu, estava lá:
— Então dona Teresa, sozinha outra vez?
Sorri-lhe com tristeza:
— Parece que sim…
Ele abanou a cabeça:
— Os filhos hoje têm sempre pressa…
Comecei a ir mais vezes ao café. Conversava com o senhor António sobre futebol e saudades do passado. Ele falava dos netos que só via pelo WhatsApp; eu falava dos meus que já quase não conhecia.
Um dia cruzei-me com a Ana no supermercado. Ela parecia cansada, distraída.
— Mãe! Que surpresa! — disse ela, mas olhou logo para o relógio — Desculpa, tenho mesmo de ir buscar a Matilde à escola…
Fiquei ali parada no corredor dos iogurtes, sentindo-me invisível.
Na Páscoa tentei reunir todos em minha casa:
— Faço cabrito no forno! Como nos velhos tempos!
A resposta foi silêncio nos grupos do WhatsApp.
Comecei a sentir raiva misturada com tristeza. Será que só sirvo quando precisam de ajuda? Será que sou apenas um peso agora?
Uma noite liguei ao Miguel:
— Filho… tens um minuto?
— Mãe… agora não dá mesmo… depois ligo eu…
Desliguei antes que ele ouvisse o meu soluço.
As paredes brancas do T1 começaram a apertar-me como um casaco demasiado justo. Senti falta do cheiro do café na cozinha antiga, das vozes na sala grande, das fotografias nas estantes.
Um dia decidi ir visitar o antigo prédio. Sentei-me no banco do jardim em frente e vi uma família nova entrar no meu antigo lar. Crianças riam-se na varanda onde os meus brincavam há tantos anos.
Senti inveja daquela alegria alheia e uma dor aguda no peito.
Voltei para casa devagarinho. No elevador encontrei uma vizinha nova:
— Mora cá há muito? — perguntou ela.
— Não… mas parece uma eternidade — respondi.
À noite escrevi uma carta à Ana e ao Miguel:
“Meus filhos,
Sei que as vossas vidas são difíceis e ocupadas. Mas eu também existo. Sinto falta de vocês. Sinto falta de ser mãe presente e avó querida. Troquei tudo por vocês porque vos amo mais do que tudo neste mundo. Só peço que não se esqueçam de mim.”
Nunca tive coragem de enviar.
Hoje faço parte de um grupo de idosos na junta de freguesia. Jogamos cartas, fazemos caminhadas lentas pelo bairro e partilhamos histórias parecidas: todos demos tudo pelos filhos; quase todos recebemos silêncio em troca.
Às vezes pergunto-me: será que fiz bem? Será que devia ter pensado mais em mim? Ou será este o destino de todas as mães?
E vocês? Acham que vale sempre a pena sacrificar tudo pela família?