Quando o Amor se Torna Dívida: A História de Sofia e Rui
— Sofia, precisamos de falar — disse Rui, com aquela voz fria que eu já conhecia demasiado bem. Estava sentado à mesa da cozinha, os papéis espalhados à sua frente, como se fosse um contabilista e não o homem com quem partilhei metade da minha vida.
O meu coração batia tão forte que pensei que ele pudesse ouvir. Sentei-me à sua frente, as mãos a tremerem. — O que foi agora, Rui?
Ele não levantou os olhos. — Estive a fazer contas. Sabes que desde que deixaste o trabalho para ficares com as miúdas, fui eu que paguei quase tudo cá em casa. — Fez uma pausa, como se esperasse que eu protestasse. Mas eu só conseguia olhar para ele, sem acreditar no que estava a ouvir.
— Rui… — murmurei, mas ele continuou.
— Não é justo. Eu trabalhei, esforcei-me, e tu… tu escolheste ficar em casa. Agora quero que me devolvas metade do que gastei nestes anos. Pelo menos o que é justo.
Senti o chão a fugir-me dos pés. Dez anos de casamento, duas filhas pequenas, noites sem dormir, abdicar do meu emprego como enfermeira para cuidar delas porque ele dizia que era melhor assim… E agora isto? Uma fatura? Um pedido de reembolso?
— Rui, estás a brincar? — perguntei, a voz embargada.
Ele finalmente olhou para mim. Os olhos dele estavam frios, distantes. — Não estou. Não é justo para mim. Preciso desse dinheiro para recomeçar.
Foi aí que percebi: ele já tinha decidido ir-se embora. O dinheiro era só o pretexto. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim, misturada com uma tristeza tão funda que quase me afogava.
Lembrei-me de todas as vezes em que pus as necessidades dele à frente das minhas. Das noites em claro com a Matilde doente, enquanto ele dormia no sofá porque “tinha de trabalhar cedo”. Das tardes passadas no parque com as miúdas, dos almoços apressados para conseguir fazer tudo antes dele chegar a casa. E agora ele queria um recibo?
— Rui, eu não sou tua funcionária! — gritei, sem conseguir controlar-me.
Ele encolheu os ombros. — Não vale a pena discutir. Já falei com um advogado.
As palavras dele cortaram-me como facas. Senti-me tão sozinha naquele momento como nunca antes na vida. Olhei para as mãos dele, aquelas mãos que tantas vezes me seguraram quando eu achava que não aguentava mais… Agora eram estranhas.
As semanas seguintes foram um pesadelo. Rui mudou-se para casa da mãe dele em Oeiras e deixou-me sozinha com as meninas no nosso apartamento em Benfica. Os meus pais ficaram chocados quando lhes contei o que se estava a passar.
— Isso não é normal, filha — disse a minha mãe, com os olhos marejados de lágrimas. — Ele não pode exigir-te isso! Tu deste tudo por aquela família!
O meu pai ficou calado durante muito tempo antes de falar. — Sofia, tens de te proteger. Procura um advogado também.
Mas eu não queria guerra. Queria perceber onde é que tudo tinha corrido tão mal. O Rui sempre foi pragmático, mas nunca pensei que fosse capaz disto.
As minhas filhas sentiam a tensão no ar. A Matilde começou a fazer xixi na cama outra vez; a Leonor andava calada, agarrada ao meu braço sempre que podia.
Uma noite, depois de as deitar, sentei-me no sofá e chorei até não ter mais lágrimas. Lembrei-me do dia em que conheci o Rui na faculdade de enfermagem do Porto — ele era divertido, cheio de sonhos. Falávamos durante horas sobre viajar pelo mundo, ter uma casa cheia de filhos… Onde é que esse rapaz tinha ido parar?
Os dias passaram arrastados. Tentei procurar trabalho outra vez no hospital onde tinha estagiado, mas disseram-me que estavam sem vagas. As contas começaram a acumular-se na caixa do correio: renda, luz, supermercado…
Uma tarde, recebi uma carta registada do advogado do Rui: exigia 23 mil euros pelos “gastos partilhados” dos últimos anos. Senti-me humilhada até ao osso.
Fui falar com uma advogada recomendada por uma amiga do bairro. Ela ouviu-me em silêncio e depois abanou a cabeça.
— Sofia, isto é absurdo. O casamento é uma parceria; não há lugar para este tipo de contas entre marido e mulher… Mas infelizmente há quem tente estas coisas para pressionar.
Saí do escritório dela com um misto de alívio e medo. Alívio porque ela me disse que dificilmente um tribunal lhe daria razão; medo porque percebi que o Rui estava disposto a tudo para se livrar de mim sem olhar para trás.
As discussões continuaram por telefone:
— Não vou desistir disto, Sofia! — gritava ele do outro lado da linha.
— E as tuas filhas? Já pensaste nelas? — respondia eu, desesperada.
— Vou pagar a pensão delas! Mas contigo acabou-se!
Comecei a sentir vergonha de sair à rua; sentia os olhares dos vizinhos quando passava no corredor do prédio. A minha sogra ligou-me uma vez:
— Sofia, o Rui está muito magoado… Talvez devesses tentar resolver isto sem tribunais.
— Ele pediu-me dinheiro como se eu fosse uma estranha! — respondi-lhe, sem conseguir conter as lágrimas.
Ela suspirou do outro lado da linha: — Os homens às vezes perdem o juízo…
As meninas perguntavam pelo pai todos os dias:
— A mãe, o pai já não gosta de nós?
— Claro que gosta, meu amor… Só está confuso agora.
Mas eu própria já não sabia se acreditava nisso.
O verão chegou e com ele vieram novas dificuldades: tive de pedir ajuda aos meus pais para pagar parte da renda; comecei a fazer limpezas em casas de vizinhos para conseguir algum dinheiro extra. Cada vez que entrava numa dessas casas sentia uma mistura de vergonha e revolta: era isto que restava da minha vida?
Um dia encontrei o Rui na rua quando ia buscar as meninas à escola. Ele estava diferente: mais magro, olheiras fundas.
— Sofia… podemos falar?
Olhei para ele sem saber se devia gritar ou chorar.
— O que queres agora?
Ele baixou os olhos: — Não sei o que me deu… Sinto-me perdido. Só queria recomeçar…
— E achaste que pedir dinheiro à mãe das tuas filhas era o melhor caminho?
Ele não respondeu. Ficámos ali parados uns segundos eternos até as meninas aparecerem e correrem para ele.
Nessa noite não consegui dormir. Pensei em tudo o que tinha perdido: o amor, a confiança, a minha carreira… Mas também pensei no que ainda tinha: as minhas filhas, a minha força.
Com o tempo fui reconstruindo a minha vida aos poucos. Arranjei trabalho numa clínica privada; as meninas foram-se adaptando à nova rotina entre duas casas; aprendi a viver com menos e a valorizar mais cada pequeno gesto de carinho delas.
O Rui acabou por desistir do processo depois de perceber que não tinha razão legal nem moral. Mas nunca mais voltámos ao que éramos antes.
Hoje olho para trás e pergunto-me: como é possível alguém transformar amor em dívida? Será que algum dia conseguimos perdoar verdadeiramente quem nos trai assim? E vocês… já sentiram o chão fugir-vos dos pés por causa de quem mais amavam?