Quando a Minha Liberdade se Tornou um Crime: Entre o Amor de Mãe e o Direito de Viver

— Mãe, tu não estás bem. Não podes continuar assim! — A voz da Sofia ecoava pelo corredor, carregada de raiva e incredulidade. Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos a tremerem em cima do pano de renda que eu própria fizera há anos. O cheiro do café frio misturava-se com o perfume doce das flores que colhi de manhã. Olhei para ela, tentando encontrar nos olhos da minha filha aquela menina que criei sozinha, depois de o José desaparecer sem deixar rasto.

— Sofia, por favor, ouve-me… — tentei argumentar, mas ela já estava de costas, a arrumar as coisas da Leonor na mochila cor-de-rosa.

— Não quero ouvir mais desculpas. A Leonor não vai ficar aqui enquanto tu andas metida nessas… nessas aventuras! — atirou ela, quase a chorar.

A palavra “aventuras” ficou a ecoar-me na cabeça. Era assim que ela chamava à minha tentativa de ter uma vida própria aos 56 anos. Depois de uma juventude passada entre panelas, lençóis por lavar e noites em claro à espera do José — que nunca mais voltou daquela viagem de camião para o Algarve —, dediquei-me por inteiro à Sofia. Fui mãe, pai, avó e amiga. Quando ela teve a Leonor, há seis anos, voltei a ser tudo isso. Mas agora… agora queria ser só eu.

Tudo começou há três meses, numa tarde de sexta-feira. Estava no café da Dona Emília, a ler o jornal e a beber um galão, quando o António se sentou ao meu lado. O António era viúvo há dois anos e sempre me cumprimentava com um sorriso tímido.

— Maria do Céu, não quer vir ao baile dos reformados comigo amanhã? — perguntou ele, com um brilho nos olhos que já não via há décadas.

Sorri, sem saber o que responder. Senti-me menina outra vez. Aceitei. E foi assim que tudo mudou.

O baile foi uma lufada de ar fresco. Dançámos, rimos, falámos da vida e das saudades. Pela primeira vez em muitos anos, senti-me viva. Quando contei à Sofia que tinha ido ao baile com o António, ela riu-se.

— Ó mãe, já não tens idade para essas coisas! — disse ela, meio a brincar.

Mas quando comecei a sair mais vezes — ao cinema, ao parque, até a pequenas excursões com o grupo dos reformados —, a Sofia deixou de achar graça. Começou a deixar a Leonor menos tempo comigo. Dizia que eu estava “distraída”, que já não era responsável.

Uma noite, depois de um jantar animado em casa do António com outros amigos, cheguei a casa e encontrei a Sofia à minha espera.

— Mãe, isto não pode continuar. A Leonor precisa de estabilidade. Não quero que ela veja a avó assim… tão diferente.

— Diferente como? Feliz? — perguntei-lhe, com lágrimas nos olhos.

Ela não respondeu. Apenas pegou na Leonor e foi embora.

Desde esse dia, vi a minha neta apenas duas vezes. A casa ficou vazia. O silêncio era ensurdecedor. O António tentava animar-me:

— Maria do Céu, não podes deixar que te roubem a alegria agora que finalmente a encontraste.

Mas como explicar à minha filha que eu precisava disto? Que depois de anos a viver para os outros — para ela, para o José ausente, para os vizinhos e até para os netos dos outros — eu queria viver para mim?

As vizinhas começaram a comentar:

— Ouvi dizer que andas muito saidinha… — dizia a Dona Arminda com um sorriso malicioso.

— A idade não perdoa… mas também não impede! — respondia eu, tentando disfarçar o embaraço.

No fundo, sentia-me culpada. Era suposto uma mãe abdicar sempre de si pelos filhos? Era suposto uma avó ser apenas isso — avó?

Uma tarde chuvosa, bati à porta da Sofia. Ela abriu com ar cansado.

— O que queres?

— Quero ver a Leonor. Quero falar contigo.

Sentámo-nos na sala desarrumada. A Leonor brincava no chão com bonecas.

— Sofia… eu amo-te. Amo a Leonor mais do que tudo. Mas também preciso de mim. Preciso de sentir que ainda estou viva.

Ela olhou-me com olhos marejados.

— Eu sei… mas tenho medo de te perder. Sempre foste o meu porto seguro. Agora parece que já não te reconheço.

Abracei-a. Chorámos as duas.

— Não me vais perder. Só preciso de espaço para ser feliz também.

A partir desse dia começámos lentamente a reconstruir pontes. A Sofia ainda tem dificuldade em aceitar as minhas “aventuras”, mas já me deixa ver a Leonor mais vezes. O António tornou-se parte da família — mesmo que à distância.

Às vezes pergunto-me: será egoísmo querer ser feliz depois de tantos anos de sacrifício? Ou será apenas justiça? Quantas mulheres como eu vivem presas ao papel de mãe e avó sem nunca se permitirem sonhar?

E vocês? Acham que uma mãe tem direito à sua própria vida? Ou será sempre vista como egoísta por querer ser feliz?