Sentámo-nos e Chorámos: O Dia em que Fomos Ambas Abandonadas
— Mãe, ele não vai voltar, pois não? — perguntou a Inês, com a voz embargada, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto.
Eu olhei para ela, sentada ao meu lado no velho sofá azul da sala, e senti uma dor tão funda que me faltaram as palavras. O silêncio entre nós era pesado, quase sufocante. O telemóvel dela ainda tremia na mesa de centro, como se o mundo lá fora insistisse em lembrar-nos do que tínhamos perdido.
— Não sei, filha… — respondi, tentando engolir o nó na garganta. — Às vezes as pessoas vão embora sem explicação. Às vezes… nem sequer têm coragem de olhar para trás.
Dois dias antes, o meu mundo tinha desabado. O António, meu marido há vinte anos, enviou-me uma mensagem curta: “Preciso de tempo. Não volto para casa.” Só isso. Vinte anos resumidos a uma frase fria num ecrã. Nem um telefonema, nem uma conversa cara a cara. Senti-me humilhada, descartada como um objeto velho.
No dia seguinte, a Inês chegou a casa mais cedo da escola. O rosto pálido, os olhos vermelhos. Mal entrou pela porta, largou a mochila no chão e atirou-se para os meus braços. O namorado dela, o Miguel, terminara tudo por mensagem no Instagram. “Desculpa, mas já não sinto o mesmo.”
Agora estávamos ali, mãe e filha, duas mulheres despedaçadas pela covardia dos homens que amávamos. A casa parecia maior, mais fria. O relógio da parede fazia um tic-tac irritante que me lembrava de cada segundo vazio.
A minha mãe ligou-me nessa noite. — Filha, tens de ser forte. A Inês precisa de ti agora mais do que nunca.
— E eu? — pensei eu. — Quem é que cuida de mim?
Mas não disse nada. Fingi força que não tinha. Preparei chá para nós as duas e tentei sorrir.
— Achas que ele vai arrepender-se? — perguntou a Inês de novo.
— Não sei, querida. Mas se não voltar… talvez seja porque não merece o teu amor.
Ela chorou mais um pouco e depois adormeceu com a cabeça no meu colo. Fiquei ali sentada, olhando para o teto, ouvindo-lhe a respiração pesada. Senti-me tão sozinha como nunca antes.
No dia seguinte, a rotina forçou-nos a sair da cama. Preparei o pequeno-almoço em silêncio. A Inês quase não tocou na torrada.
O telefone tocou de novo. Era a minha sogra.
— Maria do Céu, o António está bem? Ele não me atende…
— Não sei onde ele está — respondi seca. — Também me deixou.
Do outro lado ouvi um suspiro aflito.
— Ele sempre foi assim… fugia dos problemas em vez de os enfrentar.
Senti raiva a crescer dentro de mim. Porque é que ninguém me avisou? Porque é que todos sabiam menos eu?
Na escola, a Inês começou a evitar os amigos. Recebi um email da diretora: “A sua filha parece triste e distraída nas aulas.”
Em casa, as discussões começaram a surgir por tudo e por nada. Um dia foi porque deixei o leite fora do frigorífico; outro porque ela não arrumou o quarto.
— Não percebes nada! — gritou-me ela num desses dias.
— Eu percebo mais do que imaginas! — respondi-lhe eu, já sem paciência.
Depois chorámos as duas outra vez. Abraçámo-nos como náufragas no mesmo barco à deriva.
As contas começaram a acumular-se na mesa da cozinha. O António não depositava dinheiro há semanas. Liguei-lhe dezenas de vezes; nunca atendeu.
Fui ao banco pedir ajuda. O gerente olhou-me com pena.
— Tem família que a possa apoiar?
— Tenho uma mãe reformada e uma filha adolescente — respondi com amargura.
À noite, liguei à minha irmã Rita.
— Vem cá jantar connosco amanhã — pediu ela. — Não fiques sozinha.
Fomos. A casa dela estava cheia de risos dos sobrinhos pequenos. Senti inveja daquela normalidade.
— Vais conseguir ultrapassar isto — disse-me ela baixinho na cozinha. — És mais forte do que pensas.
Mas eu não me sentia forte. Sentia-me perdida.
Uma tarde, ao regressar do trabalho (arranjei um part-time numa loja para pagar as contas), encontrei a Inês sentada no chão do quarto dela com uma tesoura na mão e lágrimas nos olhos.
— O que estás a fazer? — perguntei assustada.
Ela mostrou-me uma caixa cheia de cartas e fotografias do Miguel.
— Vou deitar tudo fora — disse ela com voz trémula. — Não quero mais nada dele.
Abracei-a com força. Senti orgulho naquele pequeno gesto de coragem dela.
Com o passar das semanas, começámos lentamente a reconstruir-nos. Pequenos passos: um passeio à beira-rio ao domingo; uma ida ao cinema; risos tímidos à mesa do jantar quando alguma coisa corria mal na cozinha.
A Inês voltou a sorrir aos poucos. Eu também comecei a olhar para mim ao espelho sem sentir vergonha ou raiva.
Um dia recebi finalmente uma chamada do António.
— Maria do Céu… desculpa… — murmurou ele do outro lado da linha.
— Já não importa — respondi-lhe eu com uma calma inesperada. — Agora somos só nós duas aqui em casa.
Desliguei sem esperar resposta. Senti-me leve pela primeira vez em meses.
Hoje olho para trás e vejo duas mulheres diferentes: uma mãe e uma filha que aprenderam juntas o significado da perda e da reconstrução. Ainda dói às vezes, mas já não somos as mesmas vítimas de antes.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres em Portugal passam por isto todos os dias? Quantas mães e filhas se sentam juntas no sofá a chorar pelos homens que as deixaram? E será que algum dia aprendemos mesmo a confiar outra vez?