Entre Silêncios e Lembranças: O Peso de Ser Avó
— Mãe, não podes ficar com o Tomás outra vez esta semana? — A voz da minha filha, Inês, soava apressada do outro lado da linha. Eu olhei para o relógio: já passava das oito da noite. O jantar arrefecia na mesa, e o silêncio da casa parecia pesar mais do que nunca.
— Inês, já fiquei com ele todos os dias desta semana… — tentei responder, mas ela interrompeu-me.
— Eu sei, mãe, mas sabes como é o trabalho. E tu estás em casa, não tens nada para fazer…
Nada para fazer. Essas palavras ecoaram dentro de mim como um trovão. Fechei os olhos e respirei fundo. Quantas vezes ouvi a mesma frase? Quantas vezes pus de lado os meus próprios desejos para ser o pilar da família?
Quando o meu marido, António, morreu há dez anos, a casa ficou grande demais para mim. Os meus filhos já tinham as suas vidas organizadas. A Inês com o emprego no hospital, sempre a correr de um lado para o outro. O Pedro, meu filho mais velho, emigrado para França, ligava-me só nos aniversários e no Natal. Senti que o meu papel no mundo se esvaziava. Até que vieram os netos.
O Tomás foi o primeiro. Lembro-me do cheiro a bebé, das noites em claro, das febres e dos sorrisos desdentados. Depois veio a Leonor, dois anos depois. A casa voltou a encher-se de risos e brinquedos espalhados pelo chão. Eu era novamente necessária. Era útil. Era amada.
Mas agora… agora sinto-me uma sombra na vida dos meus filhos. Eles vêm cá deixar as crianças e vão-se embora apressados, sempre com desculpas: reuniões, trânsito, cansaço. Quando chegam para buscar os miúdos, mal me olham nos olhos.
— Mãe, tens de entender que precisamos de ti — disse-me a Inês num desses dias em que tentei explicar-lhe como me sentia.
— E eu? Quem precisa de mim? — perguntei-lhe baixinho.
Ela suspirou e desviou o olhar.
— Não compliques, mãe…
Não compliques. Como se sentir fosse complicar. Como se amar fosse um fardo.
Comecei a reparar que os meus aniversários passavam despercebidos. No Natal, era eu quem preparava tudo: a ceia, os presentes dos netos, a decoração da casa. No fim da noite, ficava sozinha a arrumar tudo enquanto eles iam embora apressados para as suas vidas.
Certa noite, depois de deitar o Tomás e a Leonor, sentei-me na varanda com uma chávena de chá nas mãos. Olhei para as luzes da cidade ao longe e senti uma tristeza funda a crescer dentro de mim. Será que algum dia perceberiam o quanto dei de mim? Será que algum dia me agradeceriam?
No dia seguinte, decidi falar com o Pedro pelo telefone. Liguei-lhe para França.
— Mãe! Que surpresa! Está tudo bem? — perguntou ele.
— Está… está tudo mais ou menos — respondi hesitante. — Sinto falta de ti. Sinto falta de todos vocês.
Houve um silêncio do outro lado.
— Eu sei que não tenho estado muito presente… Mas sabes como é a vida aqui… — começou ele.
— Sei — interrompi-o. — Mas às vezes sinto que só sirvo para tomar conta dos vossos filhos. Sinto-me invisível.
Ele ficou calado por uns segundos.
— Mãe… desculpa. Nunca pensei nisso assim. Achava que gostavas…
— Gosto! — exclamei. — Mas também gostava de sentir que sou mais do que uma ama gratuita.
A conversa terminou com promessas vagas de visitas futuras e telefonemas mais frequentes. Mas nada mudou.
Os dias passaram iguais: acordar cedo para preparar o pequeno-almoço dos netos, levá-los à escola, ir buscá-los ao fim do dia, ajudar nos trabalhos de casa, dar-lhes banho e jantar. À noite, quando finalmente ficava sozinha, sentia um vazio enorme.
Uma tarde, ao buscar a Leonor à escola, ouvi duas mães conversarem:
— A minha mãe nunca quis ajudar com os miúdos… diz que já criou os dela!
Senti uma pontada de inveja. Porque é que eu não conseguia dizer não? Porque é que sentia tanta culpa só de pensar nisso?
Nessa noite, depois do jantar, chamei a Inês à cozinha.
— Inês, preciso falar contigo.
Ela olhou-me com ar cansado.
— O que foi agora?
— Estou cansada — disse-lhe simplesmente. — Preciso de tempo para mim. Preciso que percebas que também tenho limites.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos.
— Achas justo deixares-me assim? Sabes que não tenho ninguém…
— E eu? Quem é que eu tenho? — perguntei-lhe com lágrimas nos olhos.
Ela não respondeu. Pegou na mala e saiu sem dizer mais nada.
Naquela noite chorei como há muito não chorava. Senti-me egoísta por querer mais do que aquilo que tinha. Senti-me ingrata por desejar reconhecimento quando devia bastar-me o amor dos netos.
Mas será mesmo assim? Será que amar significa anular-nos completamente?
Os dias seguintes foram estranhos. A Inês deixou de me ligar. O silêncio era pesado e frio. Os netos perguntavam por ela e eu inventava desculpas: “A mamã está ocupada no trabalho”.
Comecei a sair mais de casa. Fui ao café da esquina conversar com a Dona Rosa, participei numa aula de pintura no centro comunitário. Aos poucos fui redescobrindo pequenos prazeres esquecidos: ler um livro sem interrupções, passear no jardim sem pressa.
Uma tarde encontrei a Inês à porta da escola da Leonor. Ela estava pálida e parecia ter chorado.
— Mãe… — disse ela baixinho — Desculpa.
Abracei-a sem dizer nada. Senti o peso do perdão entre nós.
— Eu não sabia que te estava a magoar assim… — confessou ela.
— Às vezes esquecemo-nos de olhar para quem está sempre lá — respondi-lhe.
Voltámos para casa juntas naquele dia. Não falámos muito mais sobre o assunto, mas senti que algo tinha mudado entre nós.
Hoje continuo a ajudar com os netos, mas aprendi a dizer “não” quando preciso de tempo para mim. Aprendi que ser avó é um privilégio, mas não pode ser uma prisão.
Às vezes olho para trás e pergunto-me: será que devia ter imposto limites mais cedo? Será que é possível amar sem nos perdermos pelo caminho?
E vocês? Já sentiram este vazio depois de darem tudo por alguém? Como encontraram equilíbrio entre dar e receber?