O Verão Que Mudou Tudo: Uma Família à Beira-Mar
— Não me peças para ir outra vez, Luís. Não este ano. — A minha voz tremia, mesmo que tentasse soar firme. O Luís olhou-me, cansado, com aquele olhar de quem já não tem forças para discutir.
— A minha mãe já reservou a casa. Ela faz isto por nós, sabes disso. — Ele tentou sorrir, mas o sorriso morreu-lhe nos lábios.
A casa à beira-mar em Vila do Conde era o cenário perfeito para qualquer família feliz. Mas nós não éramos essa família. No ano passado, saímos de lá de mãos vazias e corações partidos. A minha sogra, Dona Teresa, sempre tão controladora, tinha o dom de transformar qualquer refeição num interrogatório e cada passeio numa competição silenciosa.
Lembro-me do último verão como se fosse ontem. O cheiro a sardinhas assadas misturava-se com o sal do mar e o som das ondas era abafado pelas discussões à mesa. A minha cunhada, Marta, chorava baixinho no quarto ao lado porque o marido dela, Rui, tinha desaparecido para ir jogar futebol com os amigos. O Luís tentava ser o mediador, mas acabava sempre a tomar partido da mãe.
Este ano, prometi a mim mesma que seria diferente. Mas agora, com a mala feita e o carro à porta, sentia-me a caminhar para um campo de batalha.
A viagem foi silenciosa. O nosso filho, Tiago, adormeceu no banco de trás com o boneco preferido apertado ao peito. O Luís mantinha os olhos na estrada e eu olhava pela janela, tentando adivinhar se as nuvens no céu eram prenúncio de tempestade ou apenas reflexo do que sentia por dentro.
Chegámos à casa e Dona Teresa recebeu-nos com um abraço apertado demais.
— Que bom que vieram! — exclamou ela, ignorando o meu desconforto. — O jantar já está quase pronto. Espero que gostes de bacalhau à Brás, Ana.
— Claro, obrigada — respondi, forçando um sorriso.
A primeira noite foi uma dança de pequenas agressões passivo-agressivas. Dona Teresa criticou a forma como cortei os legumes. Marta chegou atrasada ao jantar e foi recebida com um olhar reprovador. Rui apareceu já depois das dez, cheirando a cerveja e desculpando-se com o trânsito.
No quarto, depois de todos se recolherem, o Luís tentou abraçar-me.
— Não deixes que ela te afete tanto — sussurrou ele.
— Não é só ela. Somos todos nós. Fingimos que está tudo bem quando não está. — Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
Os dias seguintes foram uma sucessão de pequenos desastres. Tiago caiu e esfolou o joelho; Dona Teresa culpou-me por não estar atenta. Marta confessou-me que pensava em separar-se do Rui, mas tinha medo da reação da mãe. O Luís começou a chegar tarde da praia, dizendo que precisava de tempo para si.
Uma tarde, enquanto estendia toalhas no terraço, ouvi Dona Teresa ao telefone na cozinha:
— Eles não sabem dar valor ao que têm… Eu é que faço tudo por esta família! Se não fosse eu, nem férias tinham…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Fui até à cozinha e encarei-a.
— Dona Teresa, posso falar consigo?
Ela pousou o telefone devagar.
— Diz, Ana.
— Eu sei que faz muito por nós. Mas às vezes sinto que nada do que faço é suficiente. E não sou só eu… A Marta também sente isso. O Luís… todos nós estamos cansados desta pressão.
Ela olhou-me como se eu tivesse acabado de lhe bater.
— Eu só quero o melhor para vocês! — exclamou ela, os olhos marejados de lágrimas.
— Às vezes o melhor é deixar-nos respirar — respondi baixinho.
Nesse dia, Marta desapareceu durante horas. Quando voltou, tinha os olhos vermelhos e anunciou à mesa:
— Vou separar-me do Rui.
O silêncio caiu como uma pedra. Dona Teresa levantou-se abruptamente e saiu da sala. O Rui ficou a olhar para o prato vazio. O Luís suspirou e eu senti um alívio estranho por alguém finalmente ter dito a verdade em voz alta.
Nessa noite, fui até à praia sozinha. Sentei-me na areia fria e ouvi o mar. Pensei em tudo o que tínhamos perdido ao tentar agradar aos outros: tempo, paz, amor-próprio.
O Luís veio ter comigo algum tempo depois.
— Achas que estamos a fazer tudo errado? — perguntou ele.
Olhei para ele e vi o mesmo medo nos olhos dele que sentia em mim.
— Não sei — respondi. — Mas talvez esteja na altura de começarmos a fazer as coisas à nossa maneira.
No último dia das férias, fiz as malas sem pressa. Dona Teresa tentou pedir desculpa à sua maneira: deixou um bolo na cozinha com um bilhete “Para ti”. Marta partiu sozinha e Rui ficou mais uma noite na casa vazia.
No carro, a caminho de casa, Tiago perguntou:
— Mãe, vamos voltar para a praia no próximo ano?
Sorri-lhe pelo espelho retrovisor.
— Talvez sim… mas só se todos quisermos mesmo ir.
Agora pergunto-me: quantas vezes sacrificamos a nossa felicidade em nome da família? E será que vale mesmo a pena manter tradições que nos magoam só porque temos medo de mudar?