Quando o Dinheiro Fala Mais Alto: O Casamento do Meu Irmão e a Ruína da Nossa Família
— Não é justo, mãe! Eu também sou filho! — A voz do Miguel ecoou pela sala, tão carregada de raiva que até o relógio antigo pareceu parar.
Eu estava sentada no sofá, com as mãos frias e o coração aos pulos. A minha mãe, Dona Teresa, olhava para ele com olhos vermelhos, cansados de tanto chorar. O meu pai, Senhor António, mantinha-se calado, como sempre fazia quando não sabia de que lado ficar.
Miguel queria casar-se com a Inês, mas não tinha dinheiro suficiente para a festa que ela sonhava. E então, sem aviso, exigiu a sua parte da casa dos nossos pais — aquela casa onde crescemos, onde cada parede guarda uma memória nossa. Eu, como irmã mais velha, sentia-me no meio de uma tempestade que ameaçava destruir tudo.
— Miguel, tu sabes que esta casa é o único que temos — tentei argumentar, mas ele virou-se para mim com olhos de fogo.
— Pois, claro! Tu já tens o teu apartamento em Lisboa! Não precisas disto! — atirou-me na cara. Senti-me pequena, como quando éramos crianças e ele me culpava por tudo.
A Inês estava sentada ao lado dele, de mãos dadas. Não dizia nada, mas o olhar dela era de quem já tinha decidido: ou havia dinheiro para o casamento ou não havia casamento. E o Miguel estava disposto a tudo.
A discussão arrastou-se durante horas. A minha mãe chorava baixinho. O meu pai saiu para fumar no quintal. Eu tentei apaziguar, mas cada palavra minha parecia gasolina no fogo.
— Miguel, pensa bem. Se vendermos a casa, para onde vamos? — perguntei-lhe.
Ele encolheu os ombros.
— Podem ir viver para o apartamento da avó. Está vazio desde que ela morreu.
Senti um nó na garganta. Aquele apartamento era minúsculo e sombrio. Os meus pais tinham quase setenta anos. Mereciam paz, não uma mudança forçada por causa de um casamento.
Naquela noite, não consegui dormir. Oiço ainda as palavras do Miguel a ecoar na minha cabeça: “Eu também sou filho! Tenho direito!” Mas será que ter direito justifica tudo?
No dia seguinte, fui ter com os meus pais à cozinha. A minha mãe estava a fazer café, com os olhos inchados.
— Filha, eu não sei o que fazer — sussurrou ela. — Não quero perder o teu irmão… mas também não quero perder a nossa casa.
O meu pai olhou para mim e disse:
— Sempre fizemos tudo pelos nossos filhos. Mas agora parece que nada chega.
Senti-me impotente. Queria proteger os meus pais e ao mesmo tempo não queria ser eu a destruir o sonho do Miguel. Liguei-lhe nesse dia à tarde.
— Miguel, podemos falar?
Encontrámo-nos num café perto da casa dos nossos pais. Ele estava nervoso, batia com os dedos na mesa.
— Olha, eu entendo que queres casar e ter uma vida feliz — comecei eu. — Mas vender a casa dos pais… é mesmo isso que queres?
Ele suspirou.
— A Inês não quer um casamento qualquer. E eu não quero perdê-la. Já sabes como ela é…
— E os pais? Já pensaste neles?
Ele ficou em silêncio. Depois disse:
— Tu nunca gostaste da Inês.
Fiquei sem palavras. Não era verdade… ou talvez fosse um pouco. Sempre achei a Inês exigente demais para ele.
— Isto não tem nada a ver com ela — respondi. — Tem a ver connosco. Com a nossa família.
Ele levantou-se abruptamente.
— Se não me ajudam agora, nunca mais peço nada! — E saiu porta fora.
Voltei para casa dos meus pais e encontrei-os sentados à mesa da cozinha, de mãos dadas como dois náufragos agarrados à última tábua.
— O Miguel vai acabar por se arrepender disto tudo — disse o meu pai baixinho.
Mas eu sabia que não era assim tão simples. O Miguel era teimoso como uma mula e a Inês sabia bem como puxar por ele.
Os dias passaram e as discussões continuaram. A família começou a dividir-se: uns tios achavam que o Miguel tinha razão; outros diziam que era um disparate vender a casa por causa de um casamento.
Uma noite, ouvi os meus pais a discutir no quarto:
— António, se vendermos a casa, vamos para onde? — chorava a minha mãe.
— Não sei… mas também não quero perder o Miguel — respondeu ele.
Senti-me culpada por estar ali parada sem conseguir resolver nada.
No domingo seguinte houve um almoço de família. O ambiente estava pesado como chumbo. O Miguel apareceu com a Inês e mal falou connosco. Os meus pais tentaram sorrir mas vi nos olhos deles o medo de perderem tudo.
No final do almoço, o Miguel levantou-se e disse:
— Quero uma decisão até ao fim do mês. Ou vendem a casa e me dão a minha parte… ou eu corto relações com todos!
A minha mãe desatou a chorar. O meu pai ficou branco como cal.
Eu levantei-me e gritei:
— Isto é chantagem! Não podes fazer isto à nossa família!
Ele olhou para mim com desprezo:
— Tu nunca percebeste nada!
Saiu porta fora com a Inês atrás dele.
Os dias seguintes foram um inferno. Os meus pais quase não falavam um com o outro. Eu sentia-me perdida entre o dever de proteger quem me deu tudo e o medo de perder o meu irmão para sempre.
Tentei falar com a Inês mas ela recusou encontrar-se comigo. Disse apenas por mensagem:
“O Miguel merece ser feliz. Se não ajudam agora, nunca mais terão paz.”
Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo. Como podia alguém pôr o dinheiro acima da família?
No fim do mês, os meus pais chamaram-me à sala.
— Filha… decidimos vender a casa — disse o meu pai com voz trémula.
Senti um aperto no peito tão forte que quase não conseguia respirar.
— Não podem fazer isso! — gritei eu. — Vão arrepender-se!
A minha mãe chorava sem parar.
O Miguel apareceu nessa noite para assinar os papéis da venda. Não olhou para ninguém nos olhos. A Inês sorriu vitoriosa ao meu lado.
Quando tudo acabou, os meus pais mudaram-se para o apartamento da avó. O espaço era pequeno e triste. O meu pai adoeceu pouco depois; a minha mãe perdeu toda a alegria de viver.
O casamento do Miguel foi grandioso mas vazio: poucos familiares apareceram; muitos amigos afastaram-se depois de saberem como tudo aconteceu.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu mesmo a pena? O dinheiro pode comprar festas e vestidos bonitos… mas pode comprar amor? Pode comprar paz?
Às vezes pergunto-me se algum dia vamos voltar a ser uma família unida… ou se deixámos que o dinheiro destruísse tudo aquilo que tínhamos de mais precioso.