Pai sozinho em Lisboa: Noites sem sono, lágrimas e uma esperança improvável

— Rui, não te esqueças de dar o antibiótico ao Tiago antes de ires trabalhar! — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu tentava acalmar o choro do Miguel, que não queria largar o meu pescoço.

— Mãe, eu sei! — respondi, com a voz embargada de cansaço. O relógio marcava 21h17 e eu ainda nem tinha jantado. O cheiro a sopa de legumes misturava-se com o aroma a detergente barato que usava para lavar a roupa dos miúdos. Desde que a Ana saiu de casa, há quase dois anos, as noites eram todas assim: um caos de tarefas, lágrimas e silêncios pesados.

A Ana foi embora numa tarde de março, depois de uma discussão que começou por causa das contas da luz e acabou com ela a atirar-me à cara tudo o que nunca tinha dito em sete anos de casamento. “Não aguento mais esta vida, Rui! Não sou feliz!” — gritou ela, enquanto arrastava a mala pelo corredor. O Tiago, com cinco anos, ficou parado à porta do quarto, olhos arregalados. O Miguel era ainda bebé e só chorava. Eu fiquei ali, sem saber se devia correr atrás dela ou abraçar os meus filhos. No fim, não fiz nada. Só chorei.

Desde então, tudo ficou do meu lado: as contas, as noites mal dormidas, as febres repentinas, as birras e os silêncios. A minha mãe veio morar connosco para ajudar, mas já não tem idade para correr atrás de crianças pequenas. Eu trabalho à noite num armazém em Alfragide — empilho caixas até às cinco da manhã e volto para casa para preparar os pequenos-almoços e levar o Tiago à escola. O Miguel fica com a minha mãe. Às vezes adormeço no autocarro e acordo duas paragens depois.

O dinheiro nunca chega. A Ana manda uns trocos quando pode, mas arranjou outro namorado e parece ter esquecido que tem filhos. O Tiago pergunta por ela todos os domingos. “O pai, a mãe vem hoje?” — pergunta ele, com aquela esperança nos olhos que me parte o coração. Eu minto: “Talvez para a semana, filho.” Depois vou à casa de banho e choro em silêncio.

Nessa noite de novembro, estava especialmente cansado. O Miguel tinha tido febre durante o dia e eu não dormira nada. No trabalho, o chefe chamou-me ao gabinete.

— Rui, tens andado distraído. Já partiste duas caixas esta semana. Se continuares assim, vou ter de te substituir.

Baixei a cabeça e pedi desculpa. Não podia perder aquele emprego — era tudo o que me restava.

Quando cheguei a casa, já passava das seis da manhã. A minha mãe dormia no sofá com o Miguel ao colo. Havia uma carta em cima da mesa da cozinha. O remetente era desconhecido: “Gabinete de Apoio Social da Junta de Freguesia”.

Abri com mãos trémulas. Dizia que tinha direito a um apoio extraordinário para famílias monoparentais em situação de carência — um subsídio mensal durante seis meses. Não era muito dinheiro, mas era suficiente para pagar a renda sem ter de escolher entre comida ou luz.

Sentei-me à mesa e chorei como há muito não chorava — de alívio, de exaustão, de esperança. A minha mãe acordou com o barulho.

— O que foi, filho?

Mostrei-lhe a carta. Ela sorriu pela primeira vez em semanas.

— Vês? Deus não dorme.

Nos dias seguintes, as coisas começaram a mudar devagarinho. Com o subsídio consegui comprar fruta fresca para os miúdos e pagar uma explicadora ao Tiago, que andava a ter dificuldades na escola. Passei a dormir um pouco mais durante o dia e até consegui levar os miúdos ao Jardim da Estrela num domingo de sol.

Mas os problemas não desapareceram. A Ana apareceu um dia à porta — queria ver os filhos. O Tiago correu para ela; o Miguel ficou agarrado às minhas pernas.

— Rui, precisamos de conversar — disse ela, séria.

Fomos até à varanda enquanto a minha mãe vigiava as crianças.

— Quero voltar — disse ela de repente.

Senti um nó no estômago. Tanta dor, tanta ausência… E agora isto?

— Porquê agora? — perguntei, tentando controlar a raiva.

Ela chorou. Disse que o namorado a tinha deixado, que sentia falta dos filhos, que estava arrependida.

— Não é assim tão simples — respondi. — Eles sofreram muito com a tua ausência. Eu também.

Ela pediu-me uma segunda oportunidade. Disse que ia mudar, que queria reconstruir a família.

Passei noites sem dormir a pensar no assunto. Falei com a minha mãe:

— Achas que devo aceitar?

Ela suspirou:

— Só tu sabes o que é melhor para ti e para os teus filhos. Mas lembra-te: confiança demora anos a construir e segundos a destruir.

No fim, decidi dar-lhe uma hipótese — pelos miúdos mais do que por mim. Voltámos a viver juntos, mas nada voltou a ser como antes. As feridas estavam lá; as discussões também. O Tiago voltou a sorrir mais vezes; o Miguel demorou meses até chamar-lhe “mãe” outra vez.

Hoje olho para trás e pergunto-me se fiz bem. Será que valeu a pena tentar reconstruir algo partido? Ou teria sido melhor seguir sozinho?

E vocês? O que fariam no meu lugar? Quantas vezes se pode perdoar alguém antes de perdermos nós próprios?