Filha Indesejada – A História Que Ninguém Quis Ouvir
— Por que não podes ser mais como o teu primo Rui? — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, fria e cortante como uma faca afiada. Eu tinha doze anos e já sabia que nunca seria suficiente. O Rui era o filho que ela queria: jogava futebol, era extrovertido, trazia medalhas para casa. Eu era a filha que ela teve, por engano, por descuido, como tantas vezes me fez sentir.
Lembro-me de estar sentada à mesa, a mexer no arroz com o garfo, enquanto ela continuava:
— Sempre com esses livros, sempre fechada no quarto. Não percebo o que te passa pela cabeça. — Suspirava alto, como se cada palavra minha fosse um fardo.
O meu pai raramente estava em casa. Trabalhava numa fábrica em Setúbal e dizia que fazia horas extra para nos dar uma vida melhor. Mas eu sabia que era só uma desculpa para não estar ali, para não ouvir os gritos da minha mãe ou o silêncio pesado que se instalava quando ela se cansava de falar.
Aos quinze anos, comecei a perceber que havia algo errado comigo. Não era só a falta de jeito para agradar à minha mãe ou a ausência do meu pai. Era uma solidão profunda, uma sensação de não pertencer a lado nenhum. Na escola, tentava misturar-me com as outras raparigas, mas sentia-me sempre deslocada. As conversas sobre namorados e festas pareciam-me tão distantes quanto as novelas brasileiras que a minha mãe via à noite.
Uma vez, tentei falar com ela sobre o que sentia. Esperei até ao fim do jantar, quando ela estava menos irritada.
— Mãe, posso perguntar-te uma coisa?
Ela olhou-me de lado, desconfiada:
— O que é agora?
— Sentes-te feliz comigo? — A pergunta saiu-me num sussurro, quase inaudível.
Ela largou os talheres na mesa com força.
— Que disparate é esse? Claro que sim. Mas tu também não ajudas! Só dás trabalho. Se ao menos fosses como o Rui…
A conversa terminou ali. Fui para o quarto e chorei baixinho, para ninguém ouvir.
Os anos passaram e fui aprendendo a esconder-me dentro de mim mesma. Tornei-me invisível em casa. Fazia tudo para não incomodar: lavava a loiça sem que me pedissem, arrumava o meu quarto impecavelmente, estudava em silêncio. Mas nada parecia suficiente.
Quando fiz dezoito anos, decidi candidatar-me à universidade em Lisboa. Queria fugir daquela casa, daquele ambiente sufocante. Quando contei à minha mãe, ela riu-se.
— Achas mesmo que vais aguentar sozinha? Tu nem sabes fritar um ovo! — O desprezo na sua voz doeu mais do que qualquer bofetada.
O meu pai limitou-se a dizer:
— Se é isso que queres… — E voltou a enfiar-se no jornal.
Fui na mesma. Arranjei um quarto minúsculo em Benfica e comecei a estudar Letras na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Pela primeira vez na vida, senti-me livre. Podia andar pelas ruas sem medo de ser julgada, podia ler os meus livros sem ouvir críticas. Fiz amigos — poucos, mas verdadeiros — e comecei a descobrir quem era fora das paredes daquela casa.
Mas a liberdade tem um preço. O dinheiro era pouco e muitas noites jantei apenas pão com manteiga e chá. Trabalhava aos fins-de-semana numa pastelaria para pagar as contas e estudava até tarde para não desiludir ninguém — nem a mim mesma.
A minha mãe ligava-me de vez em quando, mas as conversas eram sempre iguais:
— Já arranjaste namorado? Quando é que vens cá ajudar-me com as limpezas?
Nunca perguntou se eu estava feliz ou se precisava de alguma coisa.
No segundo ano da faculdade, recebi uma chamada inesperada do meu pai.
— A tua mãe está doente. Devias vir cá.
Voltei a Setúbal com o coração apertado. Encontrei-a mais magra, os olhos fundos e a voz mais fraca do que nunca. Mas mesmo assim não resistiu:
— Agora é que apareces? Só vens porque estou mal?
Sentei-me ao lado dela e tentei segurar-lhe a mão. Ela afastou-a.
— Não preciso da tua pena.
Fiquei ali sentada em silêncio, sem saber o que dizer ou fazer. O meu pai andava pela casa como um fantasma, sem coragem para enfrentar nada nem ninguém.
Durante semanas dividi-me entre Lisboa e Setúbal, tentando cuidar dela e não perder o curso. Os dias eram longos e as noites ainda mais solitárias. Às vezes perguntava-me se valia a pena tanto esforço por alguém que nunca me quis verdadeiramente.
Uma noite, depois de lhe dar o jantar, sentei-me ao seu lado e arrisquei:
— Mãe… porque é que nunca gostaste de mim?
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em muitos anos. Vi ali uma tristeza antiga, misturada com raiva e cansaço.
— Eu queria um filho rapaz — disse finalmente. — O teu pai também. Quando nasceste… foi como se tudo tivesse corrido mal desde o início.
As palavras caíram sobre mim como pedras. Senti vontade de gritar, de fugir dali para sempre. Mas fiquei sentada, imóvel.
— Eu tentei — continuou ela — mas tu eras tão diferente… Nunca consegui perceber-te.
Chorei nessa noite como há muito não chorava. Não por ela, mas por mim mesma — pela criança que fui e pela mulher que tentava ser.
Quando a minha mãe morreu alguns meses depois, senti um vazio estranho. Não era tristeza nem alívio — era só um silêncio pesado, como se finalmente tivesse acabado uma luta antiga.
O meu pai mudou-se para casa da irmã e eu fiquei sozinha com as memórias daquela casa fria. Voltei para Lisboa decidida a não repetir os erros deles: prometi a mim mesma nunca desejar outra vida além da minha.
Hoje tenho trinta anos e continuo a lutar todos os dias para me aceitar como sou. Ainda há momentos em que me pergunto se algum dia serei suficiente para alguém — ou até para mim própria.
Mas aprendi uma coisa: ninguém pode viver preso ao passado dos outros.
E vocês? Já sentiram que nunca foram realmente desejados? Como encontraram o vosso lugar no mundo?