Marcada para Sempre: A História de Teresa e os Olhares da Vila
— Não pode entrar, Dona Teresa. São ordens da direção. — A voz da funcionária ecoou fria no átrio da escola, enquanto eu apertava a mão do meu filho mais novo, o Miguel, que olhava para mim com olhos de quem não entende nada do mundo.
— Mas é a peça de teatro do 4º ano! Eu só quero ver os meus filhos… — tentei argumentar, sentindo o rosto arder de vergonha e raiva. Atrás de mim, algumas mães cochichavam, lançando olhares rápidos para os meus braços cobertos de tatuagens coloridas. O dragão azul no antebraço, as flores no pescoço, o nome dos meus filhos no pulso — cada desenho uma memória, uma dor, uma alegria.
A funcionária desviou o olhar. — Lamento, mas a direção foi clara: não é permitido o acesso a pessoas com… esse tipo de aparência. — E apontou discretamente para o meu corpo.
Miguel começou a chorar baixinho. Eu ajoelhei-me ao lado dele, tentando sorrir. — Vai correr tudo bem, filho. A mãe espera cá fora e depois contas-me tudo, está bem?
Ele assentiu, mas eu vi nos olhos dele a vergonha que não era dele — era minha. Ou melhor, era deles, daqueles que nunca me deram uma oportunidade de explicar quem sou.
Fiquei à porta da escola, sentada no muro frio, ouvindo ao longe as vozes das crianças e os aplausos abafados. Senti-me pequena, invisível. Lembrei-me de quando fiz a primeira tatuagem, aos 18 anos, para marcar o fim de um ciclo de violência em casa. O meu pai nunca aceitou as minhas escolhas e, quando engravidei do João aos 20 anos, expulsou-me de casa sem olhar para trás.
A vida nunca foi fácil. O Pedro, meu marido, conheci-o numa noite de fado no café da vila. Ele era diferente: via beleza nas minhas cicatrizes e dizia que as tatuagens eram como poemas na pele. Mas nem ele conseguiu proteger-me dos olhares tortos da vila de São Martinho das Águas.
Quando o Pedro morreu num acidente de mota há três anos, fiquei sozinha com três filhos e um currículo curto: trabalhei em cafés, limpei casas, fiz tudo o que apareceu. Mas cada vez que ia a uma entrevista, sentia o mesmo frio na barriga:
— Tem experiência? — perguntavam.
— Tenho sim senhora. Trabalhei cinco anos no Café Central e mais dois na pastelaria da Dona Lurdes.
— E… não pensa em cobrir essas tatuagens? Sabe como é… os clientes podem não gostar.
Já perdi a conta às vezes que ouvi isso. Uma vez até me disseram na cara:
— Aqui não queremos gente com esse aspeto. Dá má imagem ao negócio.
Voltei para casa muitas vezes a chorar, escondida dos miúdos. O João já percebe tudo. Tem 13 anos e já me defendeu na rua:
— A minha mãe é melhor pessoa do que muita gente aqui dentro! — gritou uma vez para um grupo de vizinhas que murmuravam à nossa passagem.
Mas eu sei que ele sofre. Sei que os colegas gozam com ele por causa das minhas tatuagens. “A tua mãe parece uma prisão ambulante”, ouvi um dia ao passar pelo recreio.
Em casa tento ser forte. Faço panquecas ao domingo, ajudo nos trabalhos de casa, conto histórias antes de dormir. Mas há noites em que me sento à janela e olho para as luzes da vila perguntando-me se algum dia serei aceite.
A minha mãe liga-me às vezes:
— Teresa, porque não tentas arranjar um trabalho em Lisboa? Lá ninguém liga a essas coisas.
— Mãe, não posso tirar os miúdos daqui agora… E além disso, não devia ser obrigada a fugir só porque sou diferente.
Ela suspira do outro lado da linha. Sei que se preocupa comigo, mas também sei que nunca entendeu completamente as minhas escolhas.
No Natal passado tentei organizar uma festa para as crianças do bairro. Fui bater à porta da Junta de Freguesia:
— Boa tarde! Gostava de saber se posso usar o salão para fazer uma festa para os miúdos…
O presidente olhou-me de cima a baixo antes de responder:
— Não sei se é boa ideia… Sabe como é, há pessoas que podem não gostar…
Fui embora com um nó na garganta. Senti-me rejeitada mais uma vez.
Mas houve também momentos de esperança. A Dona Lurdes, da pastelaria, foi das poucas pessoas que sempre me tratou com respeito:
— Ó menina Teresa, não ligue ao que dizem! Quem fala mal é porque tem medo do que não entende.
Ela deu-me trabalho quando ninguém mais quis. E foi lá que conheci a Ana, mãe solteira como eu, que se tornou minha amiga e confidente.
— Sabes Teresa? Um dia vão perceber que tu és muito mais do que as tuas tatuagens.
Mas será? Às vezes duvido.
No mês passado recebi uma carta da escola: “Informamos que a presença da Encarregada de Educação Teresa Silva não é desejada nas instalações escolares devido ao impacto negativo junto das crianças.” Li e reli aquelas palavras como se fossem facas cravadas no peito.
Fui falar com a diretora:
— A senhora acha mesmo que sou um perigo para as crianças? Só porque tenho tatuagens?
Ela desviou o olhar:
— Não é isso… Mas sabe como são os pais aqui na vila. Recebemos várias queixas…
Saí dali sem forças para lutar. Em casa chorei até adormecer no sofá.
Mas depois olhei para os meus filhos a brincar na sala e percebi: eles precisam de mim forte. Preciso mostrar-lhes que ninguém tem o direito de nos fazer sentir menos por sermos diferentes.
Na semana seguinte fui à reunião da associação de pais. Entrei de cabeça erguida, sentindo todos os olhares sobre mim.
— Boa noite — disse em voz firme. — Sou a Teresa Silva e sou mãe do João, da Sofia e do Miguel. Sei que muitos aqui não gostam do meu aspeto, mas quero dizer-vos uma coisa: as minhas tatuagens contam histórias da minha vida. Não sou menos mãe por isso. Quero apenas ser respeitada como qualquer outra pessoa nesta sala.
Houve silêncio durante alguns segundos. Depois ouvi alguém murmurar: “Tem coragem…” E outra mãe aproximou-se:
— Eu também tenho uma tatuagem escondida — sussurrou-me ao ouvido com um sorriso cúmplice.
Talvez seja assim que começa a mudança: devagarinho, um passo de cada vez.
Hoje continuo à procura de trabalho e ainda sou olhada de lado na rua. Mas já não abaixo tanto a cabeça. Os meus filhos sabem quem sou e isso basta-me por agora.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem presas ao preconceito dos outros? E quantas histórias bonitas se perdem só porque ninguém quis ouvir?
E vocês? Já julgaram alguém pela aparência sem conhecer a sua história?