Aceitei ser avó a tempo inteiro – e perdi-me de mim mesma
— Mãe, só mais esta semana, por favor. A Leonor tem estado exausta e eu não consigo sair mais cedo do trabalho — implorou o meu filho, Rui, ao telefone, enquanto eu tentava acalmar o choro do pequeno Tomás no meu colo.
Olhei para o relógio: eram quase sete da tarde. O jantar ainda por fazer, a roupa dos miúdos por dobrar, e a minha cabeça latejava de cansaço. Tinha prometido a mim mesma que hoje sairia para caminhar no jardim, mas mais uma vez, o dia escapara-me entre as mãos.
Quando aceitei ser avó a tempo inteiro, achei que estava a fazer o melhor pela família. Afinal, sempre ouvi dizer que “família é para ajudar”. O Rui e a Leonor lutavam para pagar a casa nova, e as creches estavam caríssimas. Eu já estava reformada, com tempo livre — pelo menos era o que todos pensavam.
No início, até me senti útil. Gostava de preparar o lanche dos netos, de os levar ao parque, de ouvir as gargalhadas da Matilde enquanto brincávamos às escondidas. Mas os dias começaram a parecer todos iguais. Acordava cedo, preparava pequenos-almoços apressados, mudava fraldas, limpava ranhos e lágrimas. O telefone tocava sempre com mais um pedido: “Mãe, podes buscar a Matilde à escola?”, “Mãe, podes ficar com eles até mais tarde?”.
Aos poucos, fui deixando de ir ao café com as amigas. As minhas caminhadas transformaram-se em corridas entre supermercados e farmácias. Os livros que queria ler acumularam pó na mesinha de cabeceira. Senti-me invisível — uma sombra na casa do meu filho.
Uma noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me no sofá e chorei baixinho. Oiço passos na escada: era a Leonor.
— Está tudo bem, D. Teresa? — perguntou ela, hesitante.
Limpei as lágrimas rapidamente.
— Está tudo bem, só estou cansada — respondi.
Ela sorriu de leve e foi buscar um copo de água para mim. Senti vontade de lhe dizer tudo: que sentia falta da minha vida, das minhas amigas, dos meus hobbies. Mas calei-me. Não queria ser um peso.
No dia seguinte, ao pequeno-almoço, Matilde perguntou:
— Avó, porque é que estás sempre triste?
O coração apertou-se-me no peito. Sorri-lhe e disse:
— Não estou triste, querida. Só estou cansada.
Mas estava triste. E zangada também. Zangada comigo própria por não saber dizer “não”. Zangada com o Rui e a Leonor por não verem o quanto me estavam a pedir.
As semanas passaram e comecei a notar pequenas coisas: o Rui já não agradecia quando eu ficava até tarde; a Leonor deixava listas de tarefas para mim em cima da mesa; até os netos começaram a tratar como garantida a minha presença constante.
Uma tarde, enquanto dobrava roupa no quarto da Matilde, ouvi uma conversa entre o Rui e a Leonor na cozinha:
— Achas que a tua mãe aguenta mais uns anos nisto? — perguntou ela.
— Claro que sim! Ela adora estar com os miúdos — respondeu ele.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Saí do quarto e entrei na cozinha sem bater.
— Rui, Leonor… podemos falar?
Eles olharam para mim surpreendidos.
— Eu adoro os meus netos. Mas isto… isto não é vida para mim. Sinto-me exausta. Sinto que deixei de existir — disse num fio de voz.
O Rui ficou calado. A Leonor olhou para o chão.
— Mãe… desculpa. Nunca pensámos que te sentisses assim — murmurou ele.
— Pois não pensaram — respondi, com amargura. — Porque ninguém pergunta como estou. Só perguntam se posso ficar mais um bocadinho.
O silêncio caiu pesado sobre nós. Senti-me culpada por lhes lançar aquela verdade tão crua, mas também aliviada por finalmente falar.
Nessa noite não dormi. Pensava em tudo o que tinha abdicado: os jantares com as amigas do liceu, as aulas de pintura na junta de freguesia, os fins-de-semana em Sintra com o António antes dele partir…
No dia seguinte, decidi mudar alguma coisa. Liguei à minha amiga Lurdes:
— Lurdes, ainda vais às aulas de pintura?
— Vou sim! Porque não vens comigo esta semana?
Senti um calorzinho no peito só de pensar nisso.
Quando contei ao Rui que ia sair duas tardes por semana para as aulas de pintura, ele ficou surpreendido:
— Mas mãe… quem vai ficar com as crianças?
— Vocês vão ter de se organizar — respondi firme. — Eu preciso de tempo para mim.
A Leonor tentou argumentar:
— D. Teresa, nós contamos tanto consigo…
— Eu sei — interrompi-a suavemente — mas também preciso de contar comigo mesma.
As primeiras semanas foram difíceis. O Rui ficou magoado; percebi nos seus silêncios e olhares fugidios. A Leonor parecia andar sempre irritada. Mas eu mantive-me firme.
Voltei a encontrar-me com as amigas ao sábado à tarde para jogar cartas no café da esquina. Inscrevi-me numa aula de hidroginástica no centro comunitário. Comecei finalmente a ler aquele romance da Lídia Jorge que estava há meses à espera na estante.
Com o tempo, o Rui e a Leonor começaram a perceber que eu não era uma máquina incansável. Viram-se obrigados a pedir ajuda à sogra da Leonor e até contrataram uma senhora para ajudar algumas tardes por semana.
Certo dia, Matilde veio ter comigo com um desenho nas mãos:
— Avó, desenhei-te feliz! — disse ela sorridente.
Olhei para o papel: era eu, rodeada de pincéis coloridos e flores enormes.
Sorri-lhe com lágrimas nos olhos.
Hoje sei que não perdi os meus netos por ter dito “não”; pelo contrário: ganhei-os ainda mais. Eles aprenderam que até as avós precisam de cuidar de si mesmas para poderem cuidar dos outros.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres como eu se perdem entre sacrifícios silenciosos? Quantas avós deixam de existir para serem apenas “a avó”? Será que é egoísmo querer um bocadinho da nossa própria vida?