Anos de Sacrifício: Três Casas, Nenhum Lar

— Mãe, não podes ficar aqui. O quarto da Mariana agora é do bebé, já sabes — disse a minha filha mais velha, Joana, sem sequer me olhar nos olhos. Oiço o choro abafado do neto na sala ao lado, mas o que me dói mesmo é o tom frio da minha própria filha. Sinto as mãos a tremer e o coração a bater tão forte que quase me falta o ar.

Como é possível? Passei vinte e sete anos em França, a limpar casas de outros, a cuidar de idosos que não eram meus, a lavar escadas e a engolir saudades. Tudo para que os meus três filhos nunca passassem fome, nunca sentissem vergonha da casa onde viviam. Comprei-lhes casas — uma para cada um — em nome deles, para que tivessem sempre um teto seguro. E agora, de regresso à terra onde nasci, não tenho onde pousar a cabeça.

— Joana, só peço umas semanas. Até arranjar um sítio — insisto, tentando não mostrar o desespero na voz.

Ela suspira, impaciente. — Mãe, não percebes? O Pedro também já disse que não pode. E a Rita está em Lisboa, nem sequer tem espaço para ela própria! Tens de perceber…

Perceber? O que é que eu tenho de perceber? Que sou um estorvo? Que depois de anos a enviar dinheiro, a trazer malas cheias de presentes e saudades, agora sou um incómodo?

Lembro-me do dia em que parti. O António ainda era vivo e prometeu-me que cuidaria das crianças. Eu chorei tanto nesse autocarro para Paris… Mas dizia sempre a mim mesma: “É só por uns anos. Depois volto e ficamos todos juntos outra vez.” Os anos passaram, o António morreu de repente — ataque ao coração — e eu fiquei sozinha lá fora. Os miúdos cresceram com os avós e com as tias. Eu vinha no Natal e no verão, mas nunca era suficiente.

— Mãe, tens de entender — repete a Joana, agora mais suave. — Não é fácil para ninguém.

Saio da casa dela com uma mala pequena e o resto das minhas coisas no carro do genro. Ele nem fala comigo durante o caminho até à casa do Pedro. Só ouço o rádio baixo e o barulho dos pneus na estrada molhada.

O Pedro recebe-me à porta com um sorriso forçado. A mulher dele nem aparece. Mal entro, percebo logo que não sou bem-vinda: há caixas empilhadas no corredor e um cheiro estranho a comida requentada.

— Mãe, isto é só por uns dias, está bem? A Carla está grávida outra vez e precisamos do espaço…

Fico num sofá-cama na sala. À noite ouço-os a discutir baixinho na cozinha:

— Não podemos ficar com ela muito tempo! — sussurra a Carla.
— O que queres que eu faça? Ela não tem para onde ir!
— Ela tem três casas! Porque é que não fica numa delas?

Mordo o lábio até quase sangrar. As casas são deles. Sempre foram deles. Nunca pensei em ficar com nada para mim.

No dia seguinte, ligo à Rita. Ela atende apressada:

— Mãe, estou no trabalho! Não posso falar agora…
— Rita, preciso mesmo de falar contigo. Não tenho onde ficar.
— Oh mãe… Eu vivo num T1 alugado com mais duas colegas! Não cabe cá nem mais uma mala…

Desligo antes que ela ouça o meu soluço.

Passam-se dias assim: entre casas dos filhos, olhares de lado das noras e genros, silêncios constrangedores à mesa do jantar. Sinto-me uma estranha na vida deles. Uma sombra do passado que ninguém quer enfrentar.

Uma tarde, decido ir à Junta de Freguesia perguntar por apoios sociais para idosos. A funcionária olha-me com pena:

— Tem filhos? — pergunta.
— Tenho três.
— Então não tem direito a apoio habitacional. Os filhos têm obrigação legal de cuidar da senhora.

Saio dali com vontade de gritar. Obrigações legais? E as obrigações do coração? Onde ficam essas?

No café da vila encontro a Dona Amélia, vizinha de infância:

— Então Maria do Céu! Já voltou de França?
— Voltei… mas parece que não tenho lugar aqui.
— Os teus filhos não te querem?
Baixo os olhos e ela percebe tudo sem eu precisar de dizer mais nada.

À noite sonho com o António. Ele sorri-me do outro lado da mesa da cozinha antiga:

— Fizeste tudo por eles, Céu. Mas às vezes os filhos esquecem-se do caminho para casa…
Acordo com lágrimas nos olhos.

Os dias passam lentos. Vou ficando cada vez mais calada. Os netos olham-me com curiosidade mas também com distância — sou uma avó estranha, que aparece só de vez em quando e fala com um sotaque esquisito misturado de francês e português antigo.

Um domingo à tarde, durante o almoço em casa da Joana (onde fui “convidada” porque era aniversário do neto), ouço-os a falar sobre mim como se eu não estivesse ali:

— Temos de resolver isto — diz o Pedro.
— Ela não pode andar sempre de casa em casa — concorda a Rita.
— Mas também não podemos abdicar das casas! — atira a Joana.

Levanto-me devagar e vou até à varanda respirar fundo. O céu está cinzento e começa a chover devagarinho. Sinto as lágrimas misturarem-se com as gotas frias na cara.

Quando volto para dentro, todos se calam. Olham para mim como se eu fosse uma criança perdida.

— Não se preocupem — digo finalmente, com voz firme apesar do nó na garganta. — Eu trato de mim mesma. Sempre tratei.

Naquela noite durmo no carro estacionado junto ao rio. O frio entra pelos vidros partidos mas pelo menos ali ninguém me julga nem me manda embora.

No dia seguinte vou ao cartório pedir informações sobre vender uma das casas. O funcionário olha-me surpreendido:

— Mas estas casas estão todas em nome dos seus filhos…
Sinto um aperto no peito tão forte que quase caio ali mesmo.

Volto ao carro e fico horas a olhar para o rio escuro. Penso em tudo o que perdi: os aniversários dos filhos, os natais sozinha em Paris, as rugas que me cresceram no rosto sem ninguém reparar nelas.

À noite recebo uma mensagem da Rita:

“Mãe, desculpa… Podemos falar?”

Encontro-me com ela num café pequeno perto da estação dos comboios. Ela chega atrasada, cansada, mas abraça-me como há muitos anos não fazia.

— Mãe… Eu sei que falhámos contigo. Mas tu também nunca estiveste cá… Crescemos sem ti e agora não sabemos como te ter por perto.
Fico calada muito tempo antes de responder:
— Eu fiz tudo por vocês…
Ela chora baixinho:
— Eu sei… Mas agora somos todos estranhos uns para os outros.

Saio dali sem saber se sinto raiva ou só tristeza profunda.

Hoje estou sentada neste banco do jardim municipal, a ver as folhas caírem das árvores como caíram os anos da minha vida: depressa demais, sem eu dar conta.

Pergunto-me: valeu mesmo a pena todo este sacrifício? Será que algum dia vou voltar a sentir-me em casa? E vocês aí desse lado — o que fariam no meu lugar?