Quando o Meu Marido Escolheu a Mãe: Uma História de Perda e Renascimento
— Mariana, não podes esperar que eu vire as costas à minha mãe! — gritou o João, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço. Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos apertadas em torno de uma chávena de chá já frio. O relógio marcava quase meia-noite, mas o sono era impossível naquela casa onde o silêncio só servia para esconder tudo o que não se dizia.
— Não te peço que a abandones, João. Só queria que estivesses do meu lado, pelo menos uma vez — respondi, sentindo a voz falhar-me. Oiço o ranger da cadeira quando ele se levanta de rompante e sai para o corredor. Fico sozinha com o som do frigorífico e o peso do que nunca conseguimos resolver.
A mãe do João, a Dona Amélia, sempre foi uma presença constante — demasiado constante — na nossa vida. Quando casámos, há sete anos, pensei que seria uma questão de tempo até ela aceitar que o filho tinha agora uma família própria. Mas enganei-me. Ela ligava todos os dias, aparecia sem avisar, criticava tudo: desde a forma como eu cozinhava ao modo como arrumava a roupa do João. No início tentei agradar-lhe. Fazia-lhe bolos, ouvia as histórias repetidas sobre os tempos em que o João era pequeno. Mas nunca era suficiente.
Lembro-me de um domingo em particular. Estávamos todos à mesa, eu, o João e a Dona Amélia. Ela olhou para mim com aquele ar de superioridade e disse:
— O João sempre gostou do arroz malandrinho como eu faço. Não sei porque insistes em pôr ervilhas…
O João riu-se, cúmplice, e eu senti-me invisível. Como se aquela casa nunca fosse realmente minha.
Os anos foram passando e a situação só piorou. Quando engravidei da nossa filha, a Matilde, pensei que as coisas iam mudar. Que talvez a Dona Amélia me visse finalmente como parte da família. Mas ela só ficou mais presente. Queria decidir tudo: desde o nome da bebé ao tipo de fraldas que devíamos comprar.
— Mariana, não percebes nada disto. Eu já criei três filhos! — dizia ela, enquanto me tirava a Matilde dos braços para lhe dar banho à sua maneira.
O João assistia a tudo em silêncio. Quando lhe pedia apoio, ele encolhia os ombros:
— A minha mãe só quer ajudar…
Mas eu sentia-me cada vez mais sozinha. Comecei a evitar estar em casa quando sabia que ela vinha. Arranjava desculpas para sair com a Matilde, para ir ao parque ou visitar a minha irmã em Sintra.
A minha irmã, a Rita, foi sempre o meu porto seguro. Uma noite, depois de mais uma discussão com o João, liguei-lhe em lágrimas.
— Mariana, tu não podes continuar assim — disse ela. — Tens de falar com ele a sério. Ou ele percebe que tem de te respeitar ou vais acabar por te perder.
Tentei seguir o conselho dela. Numa noite chuvosa de novembro, sentei-me com o João na sala.
— João, eu amo-te. Mas não aguento mais viver assim. Preciso que escolhas: ou somos nós os dois a construir uma família ou continuamos presos à tua mãe para sempre.
Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— Mariana… Ela está sozinha desde que o meu pai morreu. Não posso deixá-la agora.
— E eu? Eu também estou sozinha nesta casa! — gritei, finalmente deixando sair tudo o que guardara durante anos.
Ele não respondeu. Levantou-se e saiu para ir dormir no sofá.
Os dias seguintes foram um tormento. A Dona Amélia começou a aparecer ainda mais vezes, como se pressentisse que algo estava prestes a mudar. Um dia encontrei-a no quarto da Matilde, a remexer nas gavetas.
— O que está a fazer? — perguntei, tentando manter a calma.
— Só estou a ver se tens roupa suficiente para ela. Não quero que a minha neta ande mal vestida…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Mas calei-me. Sempre me calei.
Até ao dia em que não consegui mais.
Foi numa manhã de sábado. O João tinha saído cedo para ajudar a mãe com umas compras. Eu estava sozinha com a Matilde quando ela me perguntou:
— Mamã, porque é que a avó não gosta de ti?
Fiquei sem palavras. Como explicar a uma criança de cinco anos que às vezes os adultos não sabem amar?
Nessa noite esperei pelo João acordada. Quando entrou em casa, sentei-o à minha frente e disse-lhe tudo:
— Não posso continuar assim. Ou mudamos alguma coisa ou vou embora com a Matilde.
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Finalmente disse:
— Mariana… Eu não consigo escolher entre ti e a minha mãe.
Nesse momento percebi que já tinha perdido há muito tempo.
Arrumei algumas roupas minhas e da Matilde e fui para casa da Rita. Passei semanas sem conseguir dormir direito, sem saber se tinha feito bem ou mal. O João ligava todos os dias para falar com a filha, mas comigo era só silêncio ou frases curtas e frias.
A Dona Amélia espalhou pela família que eu era ingrata, que tinha destruído o casamento do filho por egoísmo. Alguns primos deixaram de me falar; outros mandavam mensagens de apoio às escondidas.
Comecei terapia para tentar entender onde me tinha perdido pelo caminho. Aos poucos fui percebendo que não era egoísmo querer ser respeitada na minha própria casa. Que não era errado querer construir uma família onde todos tivessem voz — até eu.
O divórcio foi doloroso, mas libertador. O João ficou com a mãe; eu fiquei com a Matilde e uma paz nova dentro do peito.
Hoje olho para trás e vejo aquela mulher insegura e calada com compaixão — mas também com orgulho pela coragem de ter dito basta.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas ao medo de desagradar? Quantas sacrificam os seus sonhos para manter uma paz falsa?
E vocês? Já sentiram que tiveram de escolher entre si próprias e aquilo que os outros esperam?