Amanhã Direi Todas as Verdades: Confissões de uma Nora Portuguesa
— Mariana, já viste como está a cozinha? — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoou pelo corredor, cortando o silêncio da noite como uma faca afiada. Eu estava sentada à mesa da sala, com as mãos trémulas sobre o tampo de madeira, tentando encontrar coragem para responder. Mas, como tantas vezes antes, limitei-me a engolir em seco e levantei-me devagar.
— Já vou tratar disso, Dona Lurdes — murmurei, sentindo o peso das palavras não ditas a esmagar-me o peito.
O relógio marcava quase meia-noite. O meu marido, Rui, estava enfiado no sofá da sala a ver futebol, indiferente ao mundo à sua volta. O nosso filho, Tiago, dormia no quarto ao lado. E eu? Eu era uma sombra dentro da minha própria casa.
Quando casei com o Rui, há sete anos, achei que estava a começar uma nova vida. Vinha de uma aldeia pequena do interior do Alentejo e sonhava com liberdade, com amor e com uma família unida. Mas rapidamente percebi que a casa dos pais do Rui não era um lar — era uma prisão feita de rotinas rígidas e silêncios pesados.
No início, tentei agradar a todos. A Dona Lurdes era exigente: queria tudo à sua maneira, desde a forma como se fazia o arroz até à maneira como se dobravam as toalhas. O meu sogro, Senhor António, era um homem calado, mas os seus olhares diziam tudo: não confiava em mim para cuidar do filho dele. E o Rui… O Rui parecia cada vez mais distante.
— Mariana, não te esqueças de passar a ferro as camisas do Rui para amanhã — insistia Dona Lurdes todas as noites.
Eu sorria e dizia que sim. Mas por dentro sentia-me a desaparecer. Comecei a perder peso, a dormir mal. As minhas amigas de infância ligavam-me e eu inventava desculpas para não sair. Tinha vergonha de admitir que não era feliz.
Uma noite, depois de mais uma discussão por causa do jantar — Dona Lurdes achava que o bacalhau estava salgado demais — fechei-me na casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas. Olhei-me ao espelho e quase não me reconheci. Onde estava aquela Mariana cheia de sonhos?
O Rui raramente me defendia. Quando tentava falar com ele sobre a mãe dele, encolhia os ombros.
— Sabes como ela é… Não vale a pena chateares-te — dizia ele, sem desviar os olhos do telemóvel.
Senti-me sozinha como nunca antes. O Tiago era o meu único raio de sol. Quando ele nasceu, pensei que talvez as coisas mudassem. Mas Dona Lurdes assumiu logo o controlo: dava conselhos sobre tudo — desde a amamentação até à escolha das roupas do bebé.
— Mariana, não sabes dar banho ao menino? Deixa estar, eu faço — dizia ela, tirando-me o filho dos braços.
A cada gesto dela, sentia-me menos mãe. Menos mulher. Menos eu.
Os anos passaram e fui-me calando. Aguentei humilhações em jantares de família — piadas sobre o meu sotaque alentejano, críticas veladas sobre a minha educação. Aguentei olhares de desconfiança quando ia às compras sozinha ou quando recebia uma chamada da minha mãe.
— Não te esqueças que agora és desta família — lembrava-me Dona Lurdes sempre que eu mostrava saudades da minha terra.
Mas esta noite foi diferente. Esta noite, enquanto lavava os pratos sozinha na cozinha fria, ouvi o Tiago a chorar no quarto. Corri até ele e encontrei-o sentado na cama, olhos vermelhos de lágrimas.
— O que foi, meu amor? — perguntei, abraçando-o.
— A avó disse que tu não sabes fazer nada bem… — soluçou ele.
Senti uma raiva antiga crescer dentro de mim. Olhei para o meu filho e percebi que não podia continuar assim. Não podia deixar que ele crescesse a achar que a mãe dele era fraca ou incapaz.
Voltei à cozinha e encontrei Dona Lurdes à espera.
— O Tiago está a chorar por tua causa — atirou ela, cruzando os braços.
— Basta! — gritei, surpreendendo-me até a mim própria com a força da minha voz.
O Rui apareceu à porta da sala, finalmente tirando os olhos do telemóvel.
— O que se passa aqui? — perguntou ele.
Olhei para ele e vi nos seus olhos um misto de surpresa e irritação. Mas já não me importava.
— Estou farta! Farta de ser tratada como uma empregada nesta casa! Farta de ser humilhada todos os dias! Farta de ninguém me ouvir! — As palavras saíam como um rio descontrolado.
Dona Lurdes ficou branca como a cal da parede. O Rui tentou acalmar-me:
— Mariana, tem calma…
— Não! Não vou ter calma! Passei anos a engolir tudo para manter a paz nesta casa! Mas hoje chega! Amanhã vou dizer tudo o que tenho cá dentro! Vou dizer-vos todas as verdades!
O silêncio caiu pesado sobre nós. Senti o coração a bater descompassado no peito. Pela primeira vez em anos, senti-me viva.
Nessa noite quase não dormi. Fiquei sentada na cama ao lado do Tiago, ouvindo-lhe a respiração tranquila. Pensei em tudo o que tinha perdido: os meus sonhos, a minha alegria, até a minha identidade. Pensei na minha mãe lá longe no Alentejo, sempre preocupada comigo mas sem saber metade do que eu passava.
De manhã cedo, levantei-me antes de todos. Preparei o pequeno-almoço e sentei-me à mesa à espera que acordassem. Quando Dona Lurdes entrou na cozinha, olhou para mim com desconfiança.
— Dormiste mal? — perguntou ela.
— Dormi o suficiente para perceber que isto não pode continuar assim — respondi calmamente.
O Rui entrou logo depois, ainda meio adormecido.
— Mariana…
Levantei-me e olhei-os nos olhos:
— Quero falar convosco os dois. Hoje vou dizer tudo o que tenho guardado há anos. Quero respeito nesta casa. Quero ser tratada como parte da família e não como uma criada. Quero poder educar o meu filho sem interferências constantes. Quero poder ser eu própria!
Dona Lurdes tentou interromper-me:
— Mariana…
— Não! Agora sou eu que falo! — disse eu firme.
Falei durante minutos intermináveis: contei-lhes tudo o que sentia, tudo o que me magoava, tudo o que tinha sacrificado por eles. Falei das saudades da minha terra, da solidão dos dias passados entre quatro paredes frias, do medo de perder o amor do meu filho por causa das críticas constantes.
No fim, estava exausta mas aliviada. Pela primeira vez em anos senti que tinha recuperado um pedaço de mim mesma.
O Rui ficou calado durante muito tempo. Finalmente levantou-se e abraçou-me:
— Desculpa… Nunca percebi quanto estavas a sofrer.
Dona Lurdes chorou baixinho e saiu da cozinha sem dizer palavra.
Não sei se as coisas vão mudar de um dia para o outro. Mas sei que dei o primeiro passo para recuperar quem sou.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas ao silêncio por medo de perderem tudo? E será que vale mesmo a pena sacrificar-nos tanto pelos outros se isso significa perdermos quem somos?