Nunca Esperei Isto dos Meus Pais: Porta Fechada na Minha Cara
— Não, Mirela. Hoje não. — A voz da minha mãe soou fria, quase desconhecida, enquanto eu, de mala na mão e olhos inchados de tanto chorar, tentava entrar em casa dos meus pais. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o perfume das rosas do jardim, mas nada disso me trazia conforto. O meu pai nem sequer saiu da sala; ouvi apenas o som abafado da televisão, como se nada estivesse a acontecer.
— Mãe, por favor… Eu só preciso de um sítio para dormir esta noite. — A minha voz tremeu, e senti a vergonha a subir-me ao rosto. O silêncio dela foi mais cortante do que qualquer palavra.
— Volta para casa, Mirela. Resolve as tuas coisas com o Rui. Aqui não é lugar para fugas — disse ela, finalmente, sem me olhar nos olhos.
A porta fechou-se devagar, mas o estrondo ecoou dentro de mim como um trovão. Fiquei ali parada, no patamar, a sentir o frio da noite de Lisboa a entranhar-se nos ossos. O telemóvel vibrava na mala — mensagens do Rui, provavelmente insultos ou pedidos de desculpa, já nem sabia distinguir.
Cresci nesta casa, entre discussões abafadas e silêncios pesados. Os meus pais sempre foram austeros, mas pensei que o amor de mãe e pai seria incondicional. Lembro-me de ser criança e ouvir a minha mãe dizer à vizinha D. Teresa: “Aqui em casa resolve-se tudo dentro de portas.” Talvez por isso nunca tenha aprendido a pedir ajuda.
O Rui era diferente no início. Conhecemo-nos na faculdade, ele estudava Engenharia, eu Psicologia. Era divertido, fazia-me rir, dizia que eu era a mulher da vida dele. Casámos cedo demais — todos diziam isso — mas eu queria tanto fugir daquela casa onde o amor era sempre condicionado à obediência.
Os primeiros anos foram bons, mas depois vieram as cobranças. O Rui queria tudo à maneira dele: a casa impecável, o jantar pronto às oito, os meus sonhos guardados numa gaveta. Quando comecei a trabalhar numa clínica em Setúbal, ele ficou ciumento. “Para quê trabalhar tanto? Não confias em mim para te sustentar?”, perguntava ele, sempre com aquele sorriso que já não me enganava.
A discussão daquela noite foi só mais uma entre tantas. Ele chegou tarde, cheiro a cerveja e perfume barato. Perguntei-lhe onde tinha estado; respondeu-me com um olhar vazio e um encolher de ombros. “És sempre a mesma coisa, Mirela. Nunca confias em mim.” Eu gritei, ele gritou mais alto. Atirou um copo ao chão — partiu-se em mil pedaços, como eu por dentro.
Peguei na mala e saí de casa sem pensar. O caminho até à casa dos meus pais pareceu-me interminável. Cada passo era uma mistura de raiva e medo: medo do Rui, medo do futuro, medo de mim mesma.
Agora estava ali, sozinha na rua, com os meus pais a recusarem-me abrigo. Senti-me uma criança outra vez — rejeitada por quem devia proteger-me.
O telemóvel voltou a vibrar. Atendi sem pensar.
— Onde estás? — A voz do Rui soava cansada.
— Não interessa — respondi seca.
— Volta para casa, Mirela. Não faças cenas.
Desliguei sem responder. Sentei-me no muro do jardim dos meus pais e chorei baixinho, para ninguém ouvir.
Lembrei-me da minha irmã mais nova, a Joana. Sempre foi a preferida dos meus pais: estudiosa, obediente, nunca levantou problemas. Casou-se com um médico e vive numa moradia em Cascais. Raramente fala comigo — diz que não tem tempo para dramas.
Naquela noite fria, pensei em ligar-lhe. Mas imaginei logo o tom dela: “Mirela, tens de ser forte. Não podes estar sempre a fugir dos problemas.”
Fui andando pelas ruas do bairro até chegar ao café do Sr. António, que ainda estava aberto apesar da hora tardia.
— Ó menina Mirela! Que faz aqui sozinha a estas horas? — perguntou ele, preocupado.
— Só precisava de um café… e talvez de um pouco de companhia — respondi com um sorriso triste.
Ele serviu-me um galão e ficou ali comigo em silêncio. Às vezes é mais fácil falar com estranhos do que com a própria família.
— Sabe, Sr. António… Às vezes sinto que não pertenço a lado nenhum — confessei-lhe.
Ele olhou-me nos olhos e disse: — Filha, todos pertencemos a algum lado… mas às vezes demora tempo a encontrar esse lugar.
Fiquei ali até o café fechar. Depois caminhei até ao banco do jardim municipal e tentei dormir ali mesmo, enrolada no casaco.
Na manhã seguinte acordei com o som dos pássaros e o corpo dorido. Fui trabalhar como se nada tivesse acontecido — maquilhei as olheiras e sorri para os pacientes da clínica.
Durante o almoço recebi uma mensagem da minha mãe: “Espero que estejas bem.” Só isso. Nem uma palavra sobre abrir-me a porta ou perguntar se precisava de ajuda.
À noite voltei para casa. O Rui estava sentado no sofá, olhos vermelhos de tanto beber ou chorar — nunca soube distinguir.
— Desculpa — murmurou ele. — Não sei porque faço isto…
Sentei-me ao lado dele sem saber o que dizer. O silêncio entre nós era pesado como chumbo.
Os dias passaram e nada mudou realmente. Os meus pais fingiram que nada aconteceu; a Joana continuou distante; o Rui prometeu mudar mas as discussões voltaram sempre que eu tentava respirar um pouco mais fundo.
Comecei a perguntar-me se alguma vez seria possível ser feliz entre duas famílias que me exigiam tanto mas davam tão pouco em troca.
Hoje escrevo esta história porque sei que não sou a única mulher nesta encruzilhada: entre o medo de ficar sozinha e o medo de nunca ser suficiente para ninguém.
Será que alguma vez vamos conseguir quebrar este ciclo? Ou estamos condenadas a viver entre portas fechadas e silêncios ensurdecedores?