O Dia em que o Meu Irmão Deixou de Existir
— Mariana, tens de vir. É o teu irmão. — A voz da enfermeira era firme, mas havia uma urgência que me gelou o sangue. Olhei pela janela do escritório, a chuva caía pesada sobre Lisboa, e por um momento desejei que aquele telefonema fosse apenas um pesadelo.
Rui. O meu irmão mais velho. O mesmo que não me falava há três anos, desde aquela noite em que as palavras se tornaram facas e a nossa mãe ficou a chorar na cozinha. O mesmo que sempre foi o filho preferido, mesmo quando se perdeu pelo caminho. Agora estava no hospital, na ala de neurologia, e precisava de mim. Mas será que eu precisava dele?
Peguei no casaco e saí sem dizer nada aos colegas. O caminho até ao Hospital de Santa Maria pareceu interminável, cada semáforo vermelho era uma oportunidade para desistir. Mas continuei. Talvez por hábito, talvez por culpa.
Quando cheguei à receção, a enfermeira olhou-me com compaixão.
— Ele está consciente, mas confuso. Pergunta por ti.
Subi as escadas com o coração aos saltos. Lembrei-me da última vez que vi Rui: estava bêbedo, a gritar comigo porque eu não lhe emprestava dinheiro para pagar uma dívida qualquer. Disse-me coisas horríveis, coisas que ainda hoje ecoam na minha cabeça quando tento dormir.
A porta do quarto estava entreaberta. Entrei devagar.
— Rui?
Ele olhou para mim com olhos vazios, como se não me reconhecesse.
— Mariana? És mesmo tu?
Sentei-me ao lado da cama. O cheiro a desinfetante misturava-se com o cheiro agridoce da chuva molhando as paredes antigas do hospital.
— O que aconteceu, Rui?
Ele tentou sorrir, mas só conseguiu um esgar triste.
— Não sei… Acordei aqui. Dizem que tive um ataque… qualquer coisa na cabeça.
Ficámos em silêncio. O som das máquinas era o único ruído entre nós. Quis perguntar-lhe se se lembrava da última vez que falámos, mas calei-me. Não era altura para ajustar contas.
A porta abriu-se e entrou a nossa mãe, Dona Teresa, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Mariana! Graças a Deus vieste! — Abraçou-me como se eu fosse a última tábua de salvação.
Olhei para ela e senti raiva. Raiva por sempre ter protegido Rui, mesmo quando ele destruía tudo à volta. Raiva por nunca ter visto o quanto eu também precisava dela.
— Ele vai ficar bem? — perguntei à médica que entrou logo depois.
— Ainda é cedo para dizer. O Rui teve um AVC ligeiro, mas precisa de acompanhamento e alguém que cuide dele nos próximos tempos.
A mãe olhou para mim com aquela expressão que conheço desde criança: a expectativa silenciosa de que eu resolva tudo.
— Mariana, tu podes levá-lo para tua casa? Eu já não tenho forças…
Senti o peso do mundo cair-me em cima dos ombros. Eu? Depois de tudo? Depois de anos a ser a filha invisível?
— Não sei, mãe. Tenho trabalho, tenho a minha vida…
Rui olhou para mim com olhos suplicantes.
— Por favor, mana… Eu prometo que mudo. Só preciso de uma oportunidade…
As palavras dele eram como vidro moído na minha garganta. Quantas vezes já tinha ouvido promessas semelhantes? Quantas vezes já tinha acreditado?
Naquela noite, voltei para casa sem resposta. Sentei-me no sofá e deixei as lágrimas correrem em silêncio. Lembrei-me das tardes em que Rui me ensinava a andar de bicicleta no bairro da Graça, das noites em que me defendia dos miúdos mais velhos. Mas também me lembrei das vezes em que me deixou sozinha com as consequências das suas escolhas.
No dia seguinte, liguei ao meu pai, que vive no Porto desde o divórcio.
— Mariana, filha… Não te sintas obrigada a nada. O Rui fez as escolhas dele.
— Mas ele é meu irmão…
— E tu és minha filha. Não te esqueças de ti própria.
Passei os dias seguintes num limbo entre o dever e o ressentimento. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia sempre “sim”, porque ninguém quer ouvir histórias de famílias partidas.
Quando voltei ao hospital, Rui estava mais lúcido.
— Lembras-te daquela vez em que fugi de casa? — perguntou ele de repente.
Assenti.
— Foste tu que me foste buscar à estação do Oriente… Nunca te agradeci por isso.
Fiquei sem palavras. Era verdade: fui eu quem sempre tentou colar os cacos da nossa família. Fui eu quem ficou ao lado da mãe quando ele desaparecia durante dias. Fui eu quem pagou as contas quando ele perdeu o emprego.
— Porque é que fazes isto contigo próprio, Rui? — perguntei num sussurro.
Ele encolheu os ombros.
— Acho que nunca soube ser outra coisa senão um problema…
A mãe entrou nesse momento com uma caixa de pastéis de nata e tentou animar-nos com trivialidades sobre a vizinha do terceiro andar. Mas eu só conseguia olhar para Rui e ver um estranho onde antes via o meu irmão.
Na semana seguinte, Rui teve alta. A médica explicou-nos os cuidados necessários: medicação rigorosa, fisioterapia, acompanhamento psicológico. A mãe olhou para mim novamente com aquele olhar suplicante.
— Mariana…
Respirei fundo.
— Ele pode ficar comigo… por uns tempos.
O primeiro mês foi um inferno silencioso. Rui estava deprimido, passava horas a olhar pela janela do meu pequeno apartamento em Arroios. Eu tentava manter a rotina: trabalho, compras, consultas médicas. À noite discutíamos por coisas pequenas: o lixo por levar, a televisão demasiado alta, o cheiro a tabaco escondido no quarto dele.
Uma noite, explodi:
— Não aguento mais! Sempre fui eu a resolver tudo! E tu? Quando é que vais crescer?
Rui chorou como nunca o tinha visto chorar antes.
— Desculpa… Eu não sei ser outra coisa…
Nesse momento percebi: talvez ele nunca mudasse. Talvez eu tivesse de aceitar que nem todas as feridas cicatrizam só porque queremos muito.
No Natal desse ano, sentámo-nos os três à mesa: eu, Rui e a mãe. O pai ligou do Porto para desejar boas festas. Houve um silêncio estranho entre nós, como se todos tivéssemos medo de dizer algo errado e estragar aquele frágil momento de paz.
Depois do jantar, Rui veio ter comigo à varanda.
— Obrigado por não me deixares sozinho… Sei que não mereço.
Olhei para ele e vi não só o irmão problemático, mas também o rapaz perdido que sempre procurou um lugar no mundo.
Hoje escrevo esta história sem saber se fiz bem ou mal. Será que devemos sempre perdoar quem nos magoou só porque partilhamos sangue? Ou será legítimo proteger-nos mesmo quando isso significa virar costas à família?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde vai o dever de cuidar dos nossos?