O Apartamento Que Nunca Mais Foi Meu
— Mãe, não podes simplesmente aparecer assim! — gritou o Rogério, com a voz embargada, enquanto eu tentava abrir a porta do apartamento que, até há pouco mais de um ano, era meu.
Senti o coração apertar. A chave já não rodava como antes. Era como se o apartamento tivesse decidido, por si só, que já não me pertencia. Respirei fundo e tentei manter a calma.
— Rogério, este apartamento é nosso. Emprestámo-lo a vocês para se organizarem, não para se instalarem aqui para sempre! — respondi, tentando não elevar demasiado o tom de voz, mas sentindo a raiva a fervilhar-me no peito.
A Savannah apareceu à porta da cozinha, com o cabelo preso num coque apressado e um avental manchado de molho de tomate. Olhou-me de cima a baixo, como se eu fosse uma intrusa na minha própria casa.
— Dona Teresa, estamos a tentar encontrar uma solução. O Rogério ainda não conseguiu trabalho fixo e eu… — hesitou, olhando para o chão — eu também não estou a conseguir nada na minha área. Não é fácil.
Lembrei-me do dia em que lhes entreguei as chaves. Era março, chovia torrencialmente e o Rogério tinha acabado de me ligar a dizer que tinham sido despejados do quarto onde viviam em Benfica. Eu e o António tínhamos acabado de comprar uma casinha pequena em Oeiras para passar a reforma e aquele apartamento em Alvalade estava vazio. Pareceu-me natural ajudar o meu filho e a mulher. Afinal, família é para isso mesmo.
Mas um ano passou. Um ano inteiro de promessas adiadas, de currículos enviados sem resposta, de entrevistas que nunca davam em nada. E eu e o António, cada vez mais apertados na nossa casinha minúscula, com as costas doridas do sofá-cama e as saudades do nosso lar.
— Rogério, tu disseste que era só por uns meses — insisti, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — O teu pai está farto de dormir no sofá. Eu tenho saudades do meu quarto, das minhas plantas na varanda…
O Rogério desviou o olhar. Sempre foi assim: quando não quer enfrentar um problema, finge que não existe.
— Mãe, eu sei… Mas agora não dá mesmo. A Savannah está grávida — disse de repente, como se atirasse uma bomba no meio da sala.
Fiquei sem palavras. Grávida? Ninguém me tinha dito nada. Olhei para Savannah, que assentiu com um sorriso tímido.
— Descobrimos há duas semanas — murmurou ela. — Ainda não contamos a ninguém…
Senti-me traída e emocionada ao mesmo tempo. Ia ser avó. Mas também percebi que isso complicava tudo ainda mais.
— Então agora é que nunca mais saem daqui… — sussurrei, mais para mim do que para eles.
O Rogério aproximou-se e tentou pegar-me na mão.
— Mãe, por favor… Só precisamos de mais algum tempo. Prometo que assim que arranjarmos alguma coisa saímos daqui.
Saí dali sem dizer mais nada. Fui até ao jardim do prédio e sentei-me num banco frio. O António ligou-me pouco depois.
— Então? Conseguimos convencê-los?
— Não… E há mais: a Savannah está grávida.
Do outro lado da linha ouvi um suspiro pesado.
— Teresa, isto nunca mais vai acabar…
As semanas passaram e o ambiente entre nós foi ficando cada vez mais tenso. As conversas resumiam-se a mensagens secas no WhatsApp: “Precisamos de ir buscar umas coisas”, “Podem deixar as cartas na caixa?”, “Quando é que vêm cá ver o bebé?”. O nascimento da pequena Matilde trouxe alguma alegria, mas também mais confusão. Agora havia fraldas espalhadas pela casa, brinquedos no corredor e um choro constante que ecoava nas paredes onde antes reinava o silêncio.
A minha irmã Lurdes dizia-me sempre:
— Teresa, tens de ser firme! Eles estão a aproveitar-se de ti! Se fosse comigo já estavam na rua!
Mas eu não conseguia. Era o meu filho. Era a minha neta.
Um dia, depois de uma discussão feia com o António — ele queria vender o apartamento para pagar umas dívidas antigas — decidi confrontar o Rogério de vez.
— Ou arranjas uma solução até ao fim do mês ou vamos ter mesmo de tomar medidas legais — disse-lhe ao telefone, com a voz trémula mas decidida.
Do outro lado ouvi silêncio. Depois um soluço abafado.
— Mãe… Não faças isso…
Desliguei antes que me faltasse a coragem.
Nessa noite não dormi. Pensei em tudo: nas noites em que embalei o Rogério em bebé naquele mesmo apartamento; nos Natais em família; nas tardes de domingo em que cozinhávamos juntos; nos sonhos que tinha para aquela casa quando finalmente me reformasse…
No dia seguinte recebi uma mensagem da Savannah:
“Dona Teresa, desculpe por tudo. Vamos procurar outro sítio. Obrigada por tudo o que fez por nós.”
Senti um alívio misturado com culpa. Será que fui demasiado dura? Será que alguma vez vão perdoar-me?
Passaram-se meses até voltarmos a falar como antes. A Matilde já gatinhava quando finalmente os convidei para jantar na nossa nova casa em Oeiras. O Rogério estava diferente: mais magro, mais calado. A Savannah parecia cansada mas sorria com ternura para a filha.
No fim do jantar, enquanto lavávamos os pratos juntos na cozinha minúscula, o Rogério olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Mãe… Desculpa por tudo. Sei que abusámos da tua boa vontade.
Abracei-o com força. As lágrimas correram-me pela cara sem vergonha nenhuma.
Agora olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem? Até onde deve ir o amor de mãe? E vocês… já passaram por algo assim? O que fariam no meu lugar?