Quando o Amor se Parte em Casa: A Noite em que Descobri a Verdade

— Não podes estar a falar a sério, Miguel. — A minha voz saiu-me num sussurro rouco, quase inaudível, enquanto olhava para ele, parado à porta do nosso quarto. O cheiro a perfume estranho ainda pairava no ar, misturado com o aroma frio dos lençóis lavados. O relógio da parede marcava 2h17 da manhã. A nossa filha, Leonor, estava internada no Hospital de Santa Maria há três dias, e eu tinha acabado de regressar a casa para tomar um banho rápido e buscar roupa limpa. Nunca pensei que encontraria o meu marido com outra mulher na nossa cama.

Ele não disse nada. Limitou-se a olhar para mim com aquela expressão vazia que eu já conhecia dos últimos meses. A mulher — uma rapariga nova, de cabelo castanho claro e olhos grandes — apressou-se a vestir-se, murmurando desculpas apressadas. Senti o chão fugir-me dos pés. O meu corpo tremia, mas não consegui chorar. Só conseguia pensar na Leonor, sozinha no hospital, e em como tudo aquilo era irreal.

— Como é que foste capaz? — perguntei, já sem forças para gritar. — A nossa filha está doente! Eu… eu só vim buscar roupa…

Miguel passou as mãos pelo cabelo, nervoso. — Não era suposto voltares agora. Eu… — calou-se. Não havia desculpa possível.

Saí de casa sem olhar para trás. As ruas de Lisboa estavam desertas àquela hora, e o frio da madrugada cortava-me a pele. Liguei à minha mãe, Maria do Carmo, na esperança de encontrar algum consolo. Ela atendeu ao terceiro toque.

— Mãe… preciso de ti. O Miguel… ele… — a voz falhou-me.

— Filha, são horas de ligar? O que aconteceu?

— Ele trouxe uma mulher para casa. Enquanto a Leonor está no hospital! Eu não sei o que fazer…

Do outro lado ouvi apenas silêncio. Depois, um suspiro pesado.

— Filha, tens de ser forte. Os homens às vezes fazem disparates. Não podes deixar que isso te destrua agora. Pensa na Leonor.

Senti-me sozinha como nunca antes. A minha mãe sempre foi assim: prática, dura, incapaz de lidar com emoções demasiado intensas. Mas eu precisava de um abraço, de alguém que me dissesse que não era louca por sentir o mundo a desabar.

Voltei ao hospital antes do amanhecer. Sentei-me ao lado da cama da Leonor e segurei-lhe a mão pequenina. Ela dormia profundamente, ligada ao soro e aos monitores que apitavam baixinho. O rosto dela parecia tão sereno… Como é que eu ia protegê-la daquele mundo cruel?

Durante os dias seguintes, Miguel tentou ligar-me várias vezes. Mandou mensagens: “Desculpa”, “Não sei o que me deu”, “Preciso falar contigo”. Ignorei todas. No hospital, as enfermeiras olhavam para mim com compaixão — talvez já tivessem visto demasiadas mães sozinhas ali.

No domingo seguinte, decidi ir à casa da minha mãe em Almada. Precisava de falar com alguém cara a cara, de sentir que ainda tinha família. Quando cheguei, ela estava sentada à mesa da cozinha, a beber café e a ler o jornal.

— Senta-te — disse ela sem me olhar nos olhos.

— Mãe… eu não consigo perdoar o Miguel. Não depois disto.

Ela pousou a chávena com força.

— Filha, tens uma filha pequena. Achas que é fácil criar uma criança sozinha? Eu criei-te sozinha porque o teu pai morreu cedo, mas tu tens escolha! Não vais arranjar outro homem assim tão depressa.

— Não quero outro homem! Quero respeito! Quero dignidade!

Ela abanou a cabeça.

— Isso são coisas modernas. No meu tempo, as mulheres aguentavam tudo por causa dos filhos.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— E foi feliz assim? Aguentando tudo?

Ela ficou calada durante tanto tempo que pensei que não ia responder.

— Não sei se fui feliz — disse por fim. — Mas sobrevivi.

Saí dali ainda mais confusa e magoada. A minha mãe não conseguia compreender o que eu sentia; para ela, as dores das mulheres eram para ser engolidas em silêncio.

Voltei para casa apenas para encontrar Miguel sentado nas escadas do prédio, com o rosto cansado e barba por fazer.

— Preciso falar contigo — pediu ele baixinho.

— Não há nada para dizer — respondi, tentando passar por ele.

Ele agarrou-me no braço com delicadeza.

— Eu errei… mas amo-te. Amo a Leonor! Estava perdido… tu só pensavas nela… eu sentia-me sozinho…

Ri-me amargamente.

— Sentias-te sozinho? E eu? Achas que não me sinto sozinha todos os dias? Achas que não tenho medo de perder a nossa filha?

Ele baixou os olhos.

— Eu sei… mas podemos tentar outra vez? Por ela?

Olhei para ele e vi um homem pequeno, frágil, incapaz de lidar com as próprias emoções. Pela primeira vez senti pena dele — mas não amor.

— Não posso perdoar-te agora. Preciso de tempo… Preciso de pensar em mim e na Leonor primeiro.

Durante semanas vivi num limbo: entre o hospital e a casa vazia, entre as mensagens do Miguel e os silêncios da minha mãe. Os vizinhos começaram a cochichar; em Lisboa toda a gente sabe tudo sobre toda a gente. Uma vizinha chegou mesmo a perguntar:

— Então, já fizeram as pazes? Os homens são todos iguais…

Sorri por educação e fechei a porta na cara dela.

A Leonor recuperou devagarinho. Quando finalmente voltou para casa, abracei-a com tanta força que ela se riu:

— Mãe! Estás a apertar-me!

Naquela noite sentei-me na cama dela até ela adormecer. Olhei para o teto escuro e pensei em tudo o que tinha perdido — mas também em tudo o que ainda podia construir.

Miguel continuou a tentar aproximar-se durante meses. Mandava flores, cartas escritas à mão, até tentou falar com a minha mãe para pedir ajuda. Ela limitou-se a dizer:

— Isso é lá com ela agora.

Aos poucos fui percebendo que não precisava dele para ser feliz ou forte. Comecei a sair mais com colegas do trabalho; inscrevi-me num curso de cerâmica; levei a Leonor à praia da Costa da Caparica pela primeira vez desde o verão anterior. Ela corria na areia como se nada tivesse acontecido — como se o mundo fosse simples outra vez.

Certa tarde sentei-me com ela num café perto do rio Tejo e perguntei-lhe:

— Sabes que gosto muito de ti?

Ela sorriu e respondeu:

— Eu também gosto muito de ti, mamã.

Nesse momento percebi que tudo o resto era ruído: os julgamentos da família, as traições do Miguel, as expectativas da sociedade portuguesa sobre como uma mulher deve viver ou sofrer em silêncio.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao medo do julgamento? Quantas calam as suas dores para não desiludir ninguém? Será que algum dia vamos aprender a escolher-nos primeiro?