O Segredo de Dona Rosa: Uma Manhã Que Mudou Tudo
— Rosa! Espera aí, Rosa! — ouvi a voz da minha vizinha, Dona Matilde, atravessando o nevoeiro da manhã. O balde de milho quase me escorregou das mãos. O sol mal tinha nascido e eu já estava de botas enterradas na lama, pronta para alimentar as galinhas e recolher os ovos frescos. Mas aquela urgência na voz dela… não era habitual.
Virei-me devagar, sentindo o frio da manhã a entrar-me pelos ossos. — O que foi, Matilde? — perguntei, tentando disfarçar o cansaço que me pesava nos ombros desde que o António partiu há três anos.
Ela aproximou-se, o avental sujo de terra e as mãos trémulas. — Preciso de te contar uma coisa. Não posso guardar mais isto para mim.
O meu coração começou a bater mais depressa. Conhecia Matilde desde criança, crescemos lado a lado nestas terras de Trás-os-Montes, partilhando segredos e silêncios. Mas nunca a tinha visto assim.
— Anda para dentro, Rosa — insistiu ela, olhando nervosamente para a casa. — Não é coisa para se dizer aqui fora.
Deixei o balde no chão e limpei as mãos ao avental. O cheiro a palha e a terra molhada misturava-se com a ansiedade que me subia à garganta. Entrámos na cozinha, onde o relógio de parede marcava seis e meia. O lume ainda dormia nas cinzas.
— Diz lá, Matilde. O que se passa? — perguntei, sentando-me à mesa.
Ela hesitou, os olhos fugindo dos meus. — É sobre o teu neto, o Miguel.
Senti um aperto no peito. O Miguel era tudo para mim desde que a minha filha, Leonor, se foi embora para Lisboa atrás de uma vida melhor e deixou o miúdo comigo. — O que é que ele fez agora?
Matilde baixou a voz. — Ontem à noite vi-o com uns rapazes lá no largo. Estavam a fumar… não era só tabaco, Rosa. E ouvi dizer que andam metidos em coisas más.
O mundo pareceu-me desabar por um instante. O Miguel sempre fora um miúdo difícil, revoltado com a ausência da mãe e com o silêncio do pai, que nunca quis saber dele. Mas eu fazia tudo para lhe dar uma vida direita.
— Tem a certeza? — perguntei, quase num sussurro.
Ela assentiu, os olhos marejados de preocupação. — Fala com ele, Rosa. Antes que seja tarde.
Agradeci-lhe com um aceno de cabeça e esperei que saísse. Fiquei ali sentada, sozinha na cozinha fria, a olhar para as mãos calejadas pela vida. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — contra a Leonor, por ter fugido das responsabilidades; contra mim própria, por talvez não ter feito o suficiente; contra este mundo pequeno onde todos sabem tudo antes de nós próprios sabermos.
Quando o Miguel desceu as escadas, ainda com os olhos inchados do sono, tentei sorrir-lhe como sempre fazia. Mas as palavras saíram-me duras:
— Onde estiveste ontem à noite?
Ele olhou-me de lado, desconfiado. — Com os amigos.
— Que amigos? Aqueles que andam metidos em sarilhos?
O silêncio dele foi resposta suficiente. Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face.
— Miguel… tu és tudo o que me resta nesta vida. Não me faças isto — implorei.
Ele desviou o olhar, mas vi-lhe a culpa nos olhos castanhos tão parecidos com os da mãe.
— Eu não queria… Eles disseram que era só uma vez — murmurou.
— E acreditaste? Achas que essas coisas ficam só por uma vez? Olha para mim! — gritei, batendo com a mão na mesa.
Ele encolheu-se na cadeira, como se tivesse voltado a ser criança. — Desculpa, avó…
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede de pedra. Lembrei-me do António, do quanto lutámos para manter esta casa de pé quando tudo à nossa volta parecia ruir: as vinhas atacadas pela doença, os anos de seca, as noites em claro à espera da Leonor que nunca mais voltava.
— Vais prometer-me que nunca mais te metes nessas coisas — disse-lhe finalmente.
Ele assentiu com a cabeça baixa. Mas eu sabia que não bastava prometer.
Nesse momento ouvi passos apressados no quintal. Era a Leonor. Não a via há meses. Entrou sem bater à porta, como se nunca tivesse partido.
— Mãe… preciso falar contigo — disse ela, ofegante.
Olhei-a sem saber se devia abraçá-la ou expulsá-la dali mesmo.
— Agora queres falar? Depois de tudo? — perguntei, sentindo a voz tremer.
Ela olhou para o Miguel e depois para mim. — Eu sei que falhei convosco. Mas preciso de ajuda… perdi o emprego em Lisboa e não tenho para onde ir.
O Miguel levantou-se num salto e abraçou-a com força. Eu fiquei ali parada, dividida entre o alívio e a raiva acumulada durante anos.
— Não é justo chegares aqui só quando precisas — disse-lhe eu, incapaz de conter as lágrimas.
Ela ajoelhou-se ao meu lado e pegou-me nas mãos. — Mãe… eu quero recomeçar. Quero ser mãe do Miguel outra vez. Deixa-me ficar?
O silêncio foi pesado. Senti todo o peso dos anos nas costas: as noites sozinha à espera de notícias dela; os dias em que pensei desistir; os sorrisos forçados para não assustar o Miguel; as contas por pagar; as colheitas falhadas; os vizinhos sempre prontos a julgar.
Finalmente puxei-a para mim num abraço apertado. Chorámos as duas como crianças perdidas.
Naquela manhã fria de quarta-feira percebi que a família é feita de erros e perdões, de partidas e regressos inesperados. Que ninguém é perfeito e todos precisamos de uma segunda oportunidade.
Agora pergunto-me: quantas vezes fechamos o coração por orgulho? E se perdoar for mesmo o único caminho para recomeçar?