O Segredo da Reforma da Minha Mãe: Entre o Amor e a Distância
— Não sei quanto é que a minha mãe recebe de reforma, nem quero saber. Isso é problema dela, não meu — atirei, talvez mais alto do que devia, enquanto mexia no café frio na copa do escritório. O silêncio que se seguiu foi pesado. A Carla olhou para mim com aquele ar de quem está prestes a dar uma lição de moral.
— Mas tu não ajudas a tua mãe? — perguntou ela, com as sobrancelhas erguidas.
Senti o sangue subir-me à cara. Não era da conta deles. Mas, naquele momento, percebi que talvez nunca tivesse pensado realmente nisso. Sempre achei que a minha mãe era forte, independente, quase inquebrável. Desde que o meu pai morreu, há dez anos, ela nunca pediu nada a ninguém. Nem a mim, nem ao meu irmão, o Rui. E eu sempre respeitei isso. Ou talvez tenha usado isso como desculpa para não me envolver.
A conversa ficou-me a martelar na cabeça o resto do dia. Lembro-me de chegar a casa e largar a mala no chão do corredor, como sempre faço. O cheiro a sopa de legumes vinha da cozinha — a minha mãe sempre cozinhou melhor do que ninguém. Mas agora vivíamos em casas separadas. Ela ficou na nossa casa de infância, em Almada, e eu mudei-me para Lisboa quando arranjei trabalho no banco.
Peguei no telefone e liguei-lhe. Tocou três vezes antes de atender.
— Olá filha, está tudo bem? — perguntou ela, com aquela voz suave mas cansada.
— Está, mãe. Só queria saber como estavas — respondi, tentando soar casual.
— Estou bem, querida. Hoje fui ao mercado e comprei peixe fresco. Fiz um arrozinho de tamboril como tu gostas.
Sorri, mas senti um aperto no peito. Há quanto tempo não comia arroz de tamboril feito por ela? Meses? Anos?
— Mãe… posso perguntar-te uma coisa?
— Claro, filha. O que se passa?
Hesitei. Não sabia como abordar o assunto sem parecer invasiva ou interesseira.
— Tu… tu estás bem de dinheiro? Precisas de alguma coisa?
Do outro lado ouvi um suspiro longo.
— Filha, eu desenrasco-me. Sempre me desenrasquei. Não te preocupes comigo.
A conversa morreu ali. Desliguei e fiquei a olhar para o teto do quarto, sentindo-me uma estranha na vida da minha própria mãe.
No fim de semana seguinte fui visitá-la. O Rui também apareceu, com os miúdos aos saltos pela casa. A minha mãe sorria, mas via-se que estava cansada. As rugas à volta dos olhos pareciam mais fundas.
Durante o almoço, tentei puxar conversa sobre as contas da casa.
— Mãe, as coisas estão tão caras… Como é que tens feito para pagar tudo?
Ela encolheu os ombros.
— Vou gerindo. Corto aqui e ali. Não preciso de muito para viver.
O Rui olhou para mim por cima da mesa e depois desviou o olhar. Senti raiva dele — por nunca falar destas coisas — mas também raiva de mim mesma por só agora me preocupar.
Depois do almoço, ajudei-a a arrumar a cozinha. Quando os miúdos foram brincar para o quintal, ela encostou-se ao balcão e olhou-me nos olhos.
— Filha… porque é que perguntas tanto pelo dinheiro?
Senti-me envergonhada.
— No trabalho falaram sobre ajudar os pais… E eu percebi que nunca falámos disto. Não sei quanto recebes de reforma, nem se chega para tudo…
Ela sorriu tristemente.
— A reforma é pequena, filha. Mas eu aprendi a viver com pouco desde nova. O teu pai também nunca foi homem de grandes luxos.
Fiquei calada. Lembrei-me das vezes em criança em que pedia brinquedos caros e ela dizia sempre: “Talvez para o ano.” Nunca percebi porquê até ser adulta e ver quanto custava tudo.
— Se precisares de ajuda… — comecei eu.
Ela abanou a cabeça.
— Não quero ser um peso para ti nem para o Rui. Já vos dei tudo o que podia dar.
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Abracei-a com força.
Naquela noite não consegui dormir. Fiquei a pensar em todas as vezes em que podia ter perguntado mais cedo, em que podia ter estado mais presente. Lembrei-me do Natal passado, quando ela ofereceu meias feitas à mão aos netos porque “era mais pessoal” — mas agora percebia que talvez fosse porque não podia comprar brinquedos caros.
No trabalho, na segunda-feira seguinte, a Carla voltou ao assunto:
— Então? Falaste com a tua mãe?
Assenti com a cabeça.
— Ela diz que está bem… Mas acho que só diz isso para não nos preocuparmos.
A Carla sorriu com compaixão.
— Às vezes os pais fazem isso. Mas sabes… às vezes precisam mesmo de nós e têm vergonha de pedir.
Fiquei a pensar nisso o resto do dia. Liguei ao Rui nessa noite e sugeri fazermos um fundo mensal para ajudar a mãe sem ela saber — pagar-lhe algumas contas diretamente ou fazer compras maiores quando fosse preciso.
O Rui resmungou:
— Achas mesmo necessário? A mãe sempre se safou sozinha…
— Sim, mas agora está sozinha mesmo! — atirei eu, já sem paciência para aquela indiferença masculina típica dele.
Acabámos por discutir ao telefone. Ele dizia que eu estava a exagerar; eu dizia que ele era egoísta. No fim desligámos sem resolver nada.
Nos dias seguintes tentei visitar mais vezes a minha mãe. Levei-lhe compras “por acaso”, inventei desculpas para lhe dar dinheiro sem parecer esmola: “Olha mãe, deram-me isto no banco e não preciso…” Ela aceitava com um sorriso triste mas agradecido.
Um dia encontrei-a sentada à mesa da cozinha com as contas espalhadas à frente dela e uma calculadora antiga nas mãos. Não me viu entrar; estava tão concentrada nos números que parecia perdida noutro mundo.
Sentei-me ao lado dela em silêncio. Ela olhou para mim e sorriu, mas vi nos olhos dela um cansaço profundo — não só físico, mas da vida inteira.
— Mãe… deixa-me ajudar-te — pedi baixinho.
Ela pousou a mão sobre a minha e apertou-a com força.
— Obrigada, filha. Só queria que soubesses… nunca quis ser um peso para ti.
Chorei ali mesmo, sem vergonha nenhuma. Abracei-a como se pudesse protegê-la de todos os males do mundo — mas sabia que era tarde demais para recuperar o tempo perdido.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos de perguntar por medo da resposta? Quantas vezes confundimos respeito com distância? Se tivesse perguntado mais cedo… teria feito alguma diferença?