Porquê a Felicidade Me Escapou: O Preço de Ser a Outra

— Não me olhes assim, Miguel. Não suporto esse silêncio — sussurrei, sentindo o peso do olhar dele atravessar-me como uma lâmina. Estávamos sentados na sala do nosso pequeno apartamento em Almada, onde as paredes ainda cheiravam a tinta fresca e promessas por cumprir. Ele largou o copo de vinho na mesa, com força a mais, e desviou o olhar para a janela, onde a chuva caía incessante.

— Inês, não sei se isto faz sentido — murmurou ele, quase sem voz.

O meu coração apertou-se. Tantas noites sonhei com este homem, com o toque dele, com a ideia de um futuro juntos. Tantas vezes imaginei que bastava ele escolher-me para sermos felizes. Mas agora, com ele ali, finalmente só meu, tudo parecia errado. O silêncio entre nós era mais pesado do que qualquer discussão.

Quando conheci o Miguel, ele era casado com a Teresa há quase vinte anos. Tinham dois filhos adolescentes, o Tomás e a Leonor, e uma casa cheia de fotografias sorridentes. Eu era colega dele no escritório de advogados, e as nossas conversas começaram inocentes, sobre processos e clientes difíceis. Mas depressa se tornaram confidências, risos cúmplices, olhares demorados. Lembro-me da primeira vez que me tocou na mão — foi como se o mundo parasse.

Durante meses vivi na sombra, entre mensagens apagadas e encontros furtivos em hotéis baratos da Margem Sul. Cada beijo roubado era um misto de êxtase e culpa. Ele prometia-me sempre: “Só preciso de tempo. Não quero magoar ninguém.” E eu acreditava, porque precisava de acreditar.

Quando finalmente contou à Teresa, foi um desastre. Ela gritou-lhe nomes que nunca pensei ouvir sair da boca de uma mulher tão doce. Os filhos recusaram-se a falar-lhe durante semanas. Ele mudou-se para o meu apartamento com uma mala e um olhar vazio. Achei que era o início da nossa vida juntos — mas era apenas o princípio do fim.

As primeiras semanas foram um inferno disfarçado de paraíso. Miguel passava horas ao telefone com os filhos, implorando para os ver. Eu fingia não ouvir, mas cada palavra dele era uma punhalada. “A Leonor não me perdoa… O Tomás diz que não sou mais o pai dele…” E eu ali, a tentar ser forte, a cozinhar jantares que ele mal tocava.

A minha mãe deixou de me falar quando soube. “Inês, criaste vergonha na família! Roubar um homem casado? Nunca pensei isso de ti.” O meu pai limitou-se a um silêncio gelado. Os amigos afastaram-se devagarinho — uns por lealdade à Teresa, outros porque não sabiam como lidar comigo.

Comecei a sentir-me uma estranha na minha própria pele. O Miguel estava ali fisicamente, mas a cabeça dele estava sempre noutro lado — na casa antiga, nos filhos, na culpa. À noite, virava-se para o lado oposto na cama. Eu chorava baixinho para não o acordar.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as visitas aos filhos, atirei-lhe:

— Porque é que vieste? Se não consegues deixar o passado para trás, porque é que escolheste ficar comigo?

Ele olhou-me com olhos cansados:

— Porque achei que ia ser diferente… Achei que ia conseguir ser feliz contigo sem magoar ninguém. Mas magoei toda a gente.

A partir daí tudo piorou. O Miguel começou a chegar tarde do trabalho, evitava conversas profundas e passava horas no telemóvel — às vezes com os filhos, outras vezes apenas a olhar para o vazio. Eu sentia-me cada vez mais sozinha naquele apartamento que já não era nosso.

A Teresa ligava-lhe constantemente por causa dos filhos: “O Tomás precisa de dinheiro para os livros”, “A Leonor está doente”. E eu ouvia tudo, sentada no sofá, a sentir-me uma intrusa na própria vida.

Um dia encontrei uma carta da Leonor no bolso do casaco dele:

“Pai,
Não percebo porque é que escolheste ir embora por causa dela. A mãe chora todos os dias e eu odeio-te por isso. Não quero conhecer essa mulher nunca.”

Li aquelas palavras vezes sem conta até as lágrimas me cegarem. Senti-me um monstro.

Comecei a evitar sair de casa — no supermercado sentia os olhares das vizinhas, os sussurros atrás das costas: “É aquela…” No trabalho, os colegas olhavam-me de lado ou evitavam cruzar-se comigo nos corredores.

O Miguel tentou animar-me algumas vezes:

— Isto vai passar… Eles vão perceber que eu também mereço ser feliz.

Mas eu já não acreditava nisso. A felicidade parecia cada vez mais distante.

Certa noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro e filhos, gritei-lhe:

— E eu? Quando é que pensas em mim? Quando é que esta relação vai ser sobre nós e não sobre tudo o resto?

Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que ia sair pela porta e nunca mais voltar.

— Inês… Eu não sei se consigo dar-te o que precisas — disse finalmente.

Nesse momento percebi: nunca ia conseguir ser feliz à custa da infelicidade dos outros. Nunca ia conseguir apagar as lágrimas da Teresa ou curar o ódio da Leonor. Nunca ia conseguir reconstruir-me sobre ruínas.

Na manhã seguinte fiz as malas dele enquanto ele dormia. Quando acordou, limitei-me a dizer:

— Vai para casa dos teus filhos. Eles precisam mais de ti do que eu.

Ele chorou como nunca tinha visto um homem chorar. Abraçou-me com força e pediu desculpa por tudo — por ter prometido um futuro impossível, por me ter arrastado para aquele abismo.

Fiquei sozinha naquele apartamento vazio durante semanas. Os dias passaram lentos e pesados; perdi peso, perdi amigos, perdi até o gosto pela vida durante algum tempo. Só muito depois comecei a reconstruir-me — devagarinho, peça por peça.

Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena? O amor justifica mesmo tudo? Ou será que há feridas que nunca deviam ser abertas?

E vocês? Acham que é possível encontrar felicidade quando ela nasce da dor dos outros?