Nunca deixes uma amiga solteira cruzar o teu limiar

— Não devias deixar a Inês vir cá tantas vezes — disse a minha mãe, com aquele tom de quem já viu tudo na vida. Eu estava a dar de mamar ao Tomás, exausta, com olheiras fundas e o cabelo preso num coque desleixado. O cheiro do café misturava-se com o aroma doce do bebé e o azedo do meu medo. — Ela é tua amiga, mas é solteira. Nunca se sabe.

Fingi não ouvir. Mas aquela frase ficou-me presa na garganta como uma farpa. Inês era minha amiga desde o liceu. Sempre fomos inseparáveis: partilhámos segredos, chorámos juntas, rimos até doer a barriga. Quando engravidei, foi ela quem me segurou a mão no hospital, porque o Miguel estava preso no trânsito. Ela trouxe-me sopa quente quando cheguei a casa com o Tomás nos braços e as lágrimas nos olhos.

Mas agora, depois de ouvir a minha mãe, comecei a reparar em tudo. No modo como o Miguel sorria quando ela chegava. No riso fácil entre eles, nas conversas que pareciam não precisar de mim. E no silêncio pesado quando ela ia embora.

Uma noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me no sofá ao lado do Miguel. Ele estava a ver televisão, mas eu sabia que não estava a prestar atenção.

— Achas que a Inês vem cá demais? — perguntei, tentando soar casual.

Ele encolheu os ombros. — Ela ajuda-te. E tu precisas de ajuda.

— Pois… — respondi, mas não consegui evitar um tom azedo.

No dia seguinte, Inês apareceu com um bolo de chocolate. O Tomás sorriu-lhe como se ela fosse da família. Eu sorri também, mas sentia-me de fora da minha própria casa.

— Estás bem? — perguntou ela, pousando a mão no meu braço.

— Estou só cansada — menti.

Ela olhou-me nos olhos, séria. — Sabes que podes contar comigo para tudo, não sabes?

Assenti, mas não consegui olhar para ela muito tempo. Senti-me ingrata e mesquinha. Mas também sentia raiva: dela, por ser tão perfeita; de mim, por ser tão insegura; do Miguel, por não perceber nada.

As semanas passaram e a presença da Inês tornou-se rotina. Ela ajudava-me com o Tomás, fazia compras, ouvia os meus desabafos sobre noites mal dormidas e fraldas sujas. Mas também começou a ficar mais tempo depois do jantar, a rir-se das piadas do Miguel, a partilhar copos de vinho com ele enquanto eu adormecia no sofá.

Uma noite acordei com vozes baixas na sala. Fui pé ante pé até à porta e vi-os sentados juntos, muito próximos. Não estavam a fazer nada de errado — só a conversar — mas aquilo doeu-me como uma facada.

No dia seguinte confrontei o Miguel:

— Achas que ela está cá demais? Que se mete demasiado na nossa vida?

Ele olhou para mim como se eu fosse louca.

— Estás com ciúmes da tua melhor amiga?

— Não é isso… É só…

— É só o quê? — interrompeu ele. — Tu precisas dela! Eu trabalho o dia todo! Se não fosse a Inês, estavas sozinha!

Fiquei sem resposta. Era verdade. Mas porque é que me sentia tão sozinha mesmo assim?

Comecei a afastar-me da Inês. Deixei de lhe responder às mensagens tão depressa. Inventava desculpas para não a ver. Ela percebeu logo.

— O que se passa contigo? — perguntou um dia, quando finalmente aceitei encontrá-la para um café.

— Nada… Só estou cansada.

Ela suspirou. — Não mintas. Conheço-te demasiado bem.

Olhei para ela e desatei a chorar ali mesmo, no meio da pastelaria.

— Tenho medo de te perder — confessei. — Ou pior: tenho medo de perder o Miguel para ti.

Ela ficou branca como a cal da parede.

— Achas mesmo que eu seria capaz? — perguntou baixinho.

Encolhi os ombros, envergonhada.

— A minha mãe sempre disse…

Ela interrompeu-me:

— A tua mãe não sabe nada sobre nós! Eu nunca faria isso! Nunca!

Ficámos em silêncio muito tempo. Depois ela levantou-se e foi-se embora sem olhar para trás.

Durante dias não consegui dormir. O Miguel percebeu que algo se passava e tentou falar comigo, mas eu afastei-o também. Sentia-me perdida: sem amiga, sem marido, sem mim própria.

O Tomás chorava mais do que nunca e eu chorava com ele. A casa parecia maior e mais fria sem a Inês lá dentro.

Uma tarde ouvi bater à porta. Era ela. Trazia um saco com brinquedos para o Tomás e um envelope para mim.

— Vim despedir-me — disse apenas.

Abri o envelope depois dela sair: era uma carta longa onde me dizia tudo o que nunca tinha tido coragem de dizer em voz alta. Que me amava como irmã. Que nunca quisera nada do Miguel além da amizade dele porque ele fazia parte de mim. Que estava cansada de ser sempre “a solteira” suspeita em todas as casas das amigas casadas. Que precisava de se afastar para não perder o respeito por mim nem por ela própria.

Li aquela carta vezes sem conta até as palavras se desfazerem em lágrimas.

O Miguel tentou consolar-me, mas eu sabia que tinha perdido algo precioso: uma amizade verdadeira destruída pelo medo e pela insegurança plantados por uma frase antiga da minha mãe.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos que os medos dos outros destruam aquilo que temos de mais bonito? Quantas amizades já perdemos por ouvirmos conselhos envenenados pelo passado? Será que alguma vez vou conseguir perdoar-me?