Entre o Passado e o Futuro: O Peso de Ficar ou Partir
— Vais mesmo deixar-nos, Sofia? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, trémula, enquanto ela apertava o pano das mãos com força. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar. Eu olhava para a janela, tentando encontrar coragem nas ruas cinzentas de Coimbra.
— Mãe, eu… — A minha voz falhou. O meu pai, sentado à mesa, não levantou os olhos do jornal. O silêncio dele doía mais do que qualquer palavra.
Desde pequena, sempre fui a filha que ficava. A que ajudava a pôr a mesa, a que acompanhava o pai ao médico, a que escutava os desabafos da mãe sobre as contas e os vizinhos. O meu irmão, Miguel, foi embora cedo para Lisboa. Só vinha no Natal e nos aniversários, sempre com pressa, sempre com desculpas. Eu ficava. Porque alguém tinha de ficar.
Mas agora, aos 29 anos, sentia o peso desse papel a esmagar-me o peito. Tinha recebido uma proposta de trabalho no Porto — um sonho antigo, uma oportunidade rara na minha área. Mas cada vez que pensava em aceitar, via os olhos cansados da minha mãe e o silêncio magoado do meu pai.
— Não é só por mim — tentei explicar, sentando-me à frente deles. — Preciso disto. Preciso de tentar ser feliz.
A minha mãe abanou a cabeça, lágrimas a brilhar-lhe nos olhos.
— E nós? Ficaste sempre connosco. Agora que mais precisamos…
O meu pai pousou finalmente o jornal.
— A tua mãe tem razão. Não somos eternos, Sofia. E se alguma coisa nos acontecer?
Senti um nó na garganta. Era sempre assim: o medo, a culpa, o amor misturados numa sopa amarga. Lembrei-me da avó Maria, que morrera sozinha numa aldeia do interior porque os filhos tinham ido todos para fora. Lembrei-me das conversas sussurradas entre vizinhas: “Os filhos hoje só pensam neles…”
Naquela noite não dormi. Oiço ainda o tique-taque do relógio da sala e as vozes dos meus pais no quarto ao lado. Discutiam baixinho, mas percebia-se o medo de ficarem sozinhos. Levantei-me e fui até à varanda. O frio da madrugada cortou-me a pele e as lágrimas caíram sem pedir licença.
No dia seguinte, liguei ao Miguel.
— Preciso de falar contigo.
Encontrámo-nos num café perto da estação. Ele parecia sempre deslocado quando vinha cá — como se já não pertencesse à nossa cidade.
— Vais aceitar o trabalho? — perguntou ele, direto.
— Não sei… Sinto que estou a traí-los se for.
Ele suspirou.
— Sofia, tu tens direito à tua vida. Eu já fui e ninguém me fez sentir culpado assim…
— Porque és o filho homem — atirei, amarga. — Sempre foi diferente para ti.
Ele ficou calado. Sabia que era verdade.
— Mas eles precisam de ti agora — continuou ele, baixando a voz. — O pai está pior do coração do que dizem…
Senti um aperto no peito. Ninguém me tinha contado nada.
— E tu? Não podes vir mais vezes? Ajudar mais?
Ele desviou o olhar.
— O meu trabalho… A Rita está grávida…
Senti-me sozinha como nunca antes. Era tudo para mim: o peso dos pais, a ausência do irmão, os sonhos adiados.
Voltei para casa e encontrei a minha mãe sentada na sala escura.
— Desculpa — sussurrou ela. — Não quero prender-te aqui… Mas tenho tanto medo de ficarmos sozinhos.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Chorámos juntas, como quando eu era criança e tinha pesadelos.
Os dias passaram arrastados. No trabalho, os colegas falavam dos seus planos para o verão; eu fingia interesse, mas só pensava na decisão que tinha de tomar. À noite, olhava para os meus pais e via neles tudo o que eu era — e tudo o que podia perder se partisse.
Uma tarde, ao regressar das compras, encontrei o meu pai caído na cozinha. O pânico tomou conta de mim; chamei uma ambulância, liguei ao Miguel em lágrimas. No hospital disseram que era um enfarte ligeiro, mas precisava de cuidados.
Nessa noite, sentei-me sozinha no quarto e escrevi uma carta ao Porto a recusar o emprego. Disse a mim mesma que era só por agora — só até as coisas melhorarem.
O tempo passou devagar. O meu pai recuperou lentamente; a minha mãe envelheceu dez anos em poucos meses. O Miguel vinha mais vezes, mas nunca ficava muito tempo. Eu continuei a ser a filha que fica: levava-os ao médico, fazia as compras, tratava dos papéis da reforma.
Às vezes sonhava com outra vida: cafés à beira-rio no Porto, conversas com colegas novos, liberdade para ser só Sofia e não “a filha da D. Teresa” ou “a menina do Sr. António”.
Mas depois olhava para os meus pais e sentia orgulho por estar ali quando precisavam de mim. Orgulho… e uma tristeza funda por tudo o que nunca seria.
Hoje escrevo esta história porque sei que muitos vivem este dilema em Portugal: ficar perto dos pais ou partir em busca de si próprios? Será egoísmo querer mais? Ou é egoísmo pedir aos filhos que fiquem?
Às vezes pergunto-me: se tivesse ido embora naquele dia, teria sido mais feliz? Ou teria passado a vida inteira arrependida? E vocês — o que fariam no meu lugar?