A traição que rasgou a minha família: A história de Inês, de Vila Franca de Xira
— Não me mintas, Mãe! Eu ouvi tudo! — gritei, com a voz embargada, as mãos a tremerem tanto que quase deixei cair o copo de água. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. O relógio da cozinha marcava 22h17, mas para mim o tempo tinha parado naquele instante. A minha mãe, Maria do Carmo, olhou-me com os olhos marejados, mas não disse nada. O meu pai, António, estava sentado à mesa, com o olhar perdido na toalha de linho que a minha avó bordara há décadas. E eu, Inês, sentia-me como uma criança perdida no meio de uma tempestade.
Tudo começou numa noite igual a tantas outras. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar e o meu irmão mais novo, Tiago, estava no quarto a jogar computador. Eu tinha acabado de chegar da faculdade, cansada mas feliz por finalmente ter terminado um trabalho difícil. Mas aquela noite ficou marcada para sempre.
Ouvi vozes baixas na cozinha. Não era raro os meus pais discutirem sobre contas ou sobre o futuro do Tiago, mas havia algo diferente naquele tom. Uma urgência, uma dor que nunca tinha ouvido antes. Encostei-me à porta e ouvi o nome “Helena” — um nome que não pertencia à nossa família.
— António, não podes continuar assim! — sussurrou a minha mãe, quase a chorar. — Já chega de mentiras!
O meu coração disparou. Senti-me invadir por uma angústia inexplicável. Entrei de rompante na cozinha e foi aí que tudo se desmoronou.
— Quem é a Helena? — perguntei, tentando controlar as lágrimas.
O meu pai levantou-se devagar, como se cada movimento lhe doesse. Olhou-me nos olhos e vi ali um homem cansado, derrotado.
— Inês… — começou ele, mas a voz falhou-lhe.
A minha mãe virou-se para mim e disse apenas:
— O teu pai tem outra mulher.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me traída não só por ele, mas por todos os anos em que acreditara numa família perfeita. Lembrei-me das férias em Vila Nova de Milfontes, dos natais à volta da lareira, das noites em que o meu pai me embalava quando tinha pesadelos. Tudo parecia agora uma encenação cruel.
Corri para o meu quarto e fechei a porta com força. Ouvi passos atrás de mim — era o Tiago, assustado.
— O que se passa? — perguntou ele, com os olhos arregalados.
Não consegui responder. Sentei-me na cama e chorei como nunca tinha chorado antes. O Tiago sentou-se ao meu lado e abraçou-me em silêncio. Pela primeira vez senti que éramos só nós dois contra o mundo.
Os dias seguintes foram um pesadelo. A minha mãe chorava baixinho todas as noites. O meu pai tentava falar comigo e com o Tiago, mas eu não conseguia olhar para ele sem sentir raiva. O Tiago fechou-se ainda mais no mundo dele, faltando às aulas e passando horas no computador.
As discussões tornaram-se constantes. A minha mãe acusava o meu pai de destruir a família; o meu pai dizia que já não era feliz há anos. Eu sentia-me dividida entre os dois, mas acima de tudo sentia-me sozinha.
Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo da faculdade, encontrei a minha mãe sentada no sofá com uma mala feita ao lado dela.
— Vou passar uns dias em casa da tua tia Rosa — disse ela, sem me olhar nos olhos.
— Vais deixar-nos? — perguntei, a voz trémula.
— Preciso de pensar — respondeu ela. — Preciso de respirar.
O Tiago entrou na sala nesse momento e ficou parado à porta, sem saber o que dizer ou fazer. Vi nos olhos dele o mesmo medo que sentia dentro de mim: medo de perdermos tudo o que conhecíamos.
Nessa noite jantámos em silêncio. O meu pai tentou puxar conversa:
— Como correu a faculdade hoje?
Ignorei-o. Não conseguia perdoar-lhe por ter destruído a nossa família por causa de outra mulher. O Tiago levantou-se da mesa sem comer e fechou-se no quarto.
Os dias passaram arrastados. A minha mãe ligava todos os dias para saber como estávamos, mas recusava-se a falar do meu pai. O Tiago começou a sair à noite com amigos duvidosos; eu tentava manter as notas na faculdade, mas sentia-me cada vez mais perdida.
Uma noite recebi uma mensagem do meu pai: “Preciso falar contigo.” Hesitei antes de responder, mas acabei por aceitar encontrá-lo num café perto de casa.
Quando cheguei lá, ele já estava sentado à espera, com ar envelhecido e triste.
— Inês… sei que te magoei muito — começou ele. — Mas quero que saibas que sempre vos amei a ti e ao Tiago. Só… só não consegui ser feliz com a tua mãe nos últimos anos.
Olhei para ele e vi um homem despedaçado pelas escolhas que fez. Senti raiva, mas também pena.
— Porque não foste honesto connosco? — perguntei baixinho.
Ele baixou os olhos.
— Tive medo de vos perder. Mas acabei por vos perder na mesma.
Saí dali sem saber se alguma vez conseguiria perdoá-lo.
O tempo passou devagar. A minha mãe voltou para casa depois de duas semanas, mas nada voltou a ser como antes. Os jantares em família tornaram-se frios; o Tiago começou a reprovar nas disciplinas; eu deixei de acreditar no amor.
Um dia recebi uma mensagem da Helena — sim, da tal Helena — a pedir para falar comigo. Fiquei furiosa só de ver o nome dela no telemóvel, mas acabei por aceitar encontrar-me com ela num parque público.
Helena era uma mulher simples, com olhos tristes e voz suave.
— Inês… sei que nunca vais perdoar-me pelo que aconteceu entre mim e o teu pai — disse ela. — Mas quero que saibas que nunca quis destruir a tua família. Só me apaixonei pela pessoa errada.
Olhei para ela e percebi que também era vítima daquela história toda. Ninguém sai ileso de uma traição; todos perdem alguma coisa.
Voltei para casa mais leve, mas ainda cheia de dúvidas.
A vida foi seguindo o seu curso: os meus pais acabaram por se separar oficialmente; o Tiago mudou-se para casa da nossa mãe; eu continuei na faculdade e arranjei um part-time para ajudar nas despesas.
Hoje olho para trás e vejo uma rapariga diferente daquela noite em que tudo desabou. Aprendi que as pessoas erram — às vezes sem querer magoar ninguém — mas as consequências ficam para sempre.
Ainda não sei se algum dia vou conseguir perdoar totalmente o meu pai ou confiar novamente no amor. Mas sei que sou mais forte do que pensava.
E vocês? Acham possível perdoar uma traição tão profunda? Ou há feridas que nunca saram?