Entre Dois Mundos: Grávida de Gémeos e o Fantasma do Passado
— Não é justo, Miguel! — gritei, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto, enquanto ele fechava a porta da sala com mais força do que o habitual. — Ela não pode simplesmente aparecer aqui todos os dias e decidir como criamos a Matilde!
Miguel passou as mãos pelo cabelo, visivelmente exausto. — Marta, por favor… Ela é mãe da Matilde. Não posso impedi-la de ver a filha. E agora, com a tua gravidez…
— Com a minha gravidez?! — interrompi, sentindo o coração apertar. — Achas que não percebo? Achas que não vejo o medo nos teus olhos cada vez que ela liga? Achas que não sinto que nunca serei suficiente?
O silêncio caiu pesado entre nós. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, mas o sono era impossível. Desde que nos mudámos para esta casa em Oeiras, tudo parecia perfeito: as paredes recém-pintadas, o cheiro a madeira nova, os risos partilhados nas primeiras noites. Mas bastou uma semana para o passado de Miguel se infiltrar pelas frestas das janelas.
A ex-mulher dele, Patrícia, nunca aceitou bem o nosso casamento. Sempre achei que era ciúme, ou talvez medo de perder a filha. Mas desde que soube da minha gravidez — gémeos, imagine-se! — tornou-se ainda mais presente. Aparecia sem avisar para buscar a Matilde, criticava a decoração do quarto dela, insinuava que eu não sabia ser mãe.
Uma tarde, enquanto preparava o lanche para Matilde, ouvi Patrícia na entrada:
— Matilde, despacha-te! Não quero que te atrases para o ballet por causa… — fez uma pausa e olhou-me de cima a baixo — …de confusões aqui em casa.
Senti-me pequena. Tentei sorrir, mas as palavras dela eram como facas. Matilde olhou para mim, hesitante.
— Mãe Marta, posso levar o meu casaco azul?
Patrícia bufou. — Não precisas de pedir licença para nada. Vamos embora.
Miguel chegou nesse instante e tentou apaziguar:
— Patrícia, por favor…
Ela virou-se para ele, olhos faiscantes. — Não me venhas com paninhos quentes! A Matilde é minha filha. E não quero que ela cresça numa casa onde não é prioridade.
Quando fecharam a porta atrás de si, sentei-me à mesa e chorei baixinho. A barriga começava a despontar e sentia-me tão vulnerável como nunca antes.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Miguel tentava dividir-se entre mim e Matilde, mas eu sentia-o cada vez mais distante. À noite, deitava-me ao lado dele e ouvia-o suspirar no escuro.
— Tens saudades da tua antiga vida? — perguntei uma noite.
Ele virou-se para mim, olhos cansados. — Não tenho saudades dela. Só queria que tudo fosse mais simples.
As palavras dele ficaram a ecoar-me na cabeça. Será que algum dia seria suficiente? Será que algum dia aquela casa seria mesmo minha?
A tensão atingiu o auge quando Patrícia apareceu um sábado de manhã sem avisar. Eu estava na cozinha, a preparar panquecas para Matilde.
— Marta, precisamos de conversar — disse ela, entrando sem cerimónia.
Fiquei imóvel, espátula na mão.
— Sobre?
Ela olhou-me nos olhos, fria. — Sobre os meus direitos enquanto mãe da Matilde. E sobre os teus limites nesta casa.
Senti o sangue gelar-me nas veias. — Os meus limites? Esta é a minha casa também.
Ela sorriu de lado. — Por enquanto.
Nesse momento entrou Miguel, apanhando-nos no meio daquela tensão.
— O que se passa aqui?
Patrícia virou-se para ele. — Quero deixar claro que não admito que a Marta tome decisões pela minha filha. Se for preciso vou ao tribunal.
Miguel olhou para mim, depois para ela. — Ninguém está contra ti, Patrícia. Mas tens de respeitar a nossa família também.
Ela riu-se com desdém e saiu batendo a porta.
Depois desse dia, comecei a sentir os gémeos mexerem-se mais na barriga — talvez sentissem o meu nervosismo. As noites tornaram-se longas e solitárias; Miguel passava mais tempo fora, alegando trabalho ou idas ao parque com Matilde.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre Patrícia e os limites dela na nossa vida, sentei-me sozinha na varanda e escrevi uma carta aos meus filhos ainda por nascer:
“Queridos filhos,
Ainda nem nasceram e já sinto que vos falho. Queria dar-vos um lar cheio de amor e segurança, mas parece que há sempre uma sombra à nossa volta. Prometo lutar por vocês, mesmo quando me sinto fraca.”
No dia seguinte acordei com dores fortes na barriga. Fui ao hospital sozinha; Miguel estava com Matilde num passeio combinado há semanas com Patrícia. No hospital disseram-me que era stress — precisava de repouso absoluto.
Quando Miguel chegou ao hospital, vi nos olhos dele o medo e a culpa.
— Desculpa… — murmurou ele, segurando-me a mão.
— Não quero perder-te — sussurrei eu. — Nem aos nossos filhos.
Ele chorou comigo naquele quarto frio de hospital.
Depois disso, Miguel começou finalmente a impor limites à ex-mulher. As visitas passaram a ser combinadas com antecedência; Matilde começou a sentir-se mais segura e até me pediu para ajudá-la com os trabalhos da escola.
Mas Patrícia não desistiu facilmente. Um dia apareceu à porta com um advogado:
— Quero guarda partilhada total! — gritou ela à porta da nossa casa.
A vizinhança toda ouviu; senti-me humilhada e exposta.
Foram meses de tribunal, acusações e noites sem dormir. A gravidez avançava e eu sentia-me cada vez mais frágil. Mas também mais determinada: não ia deixar que ninguém destruísse aquilo por que lutei tanto.
Quando os gémeos nasceram — dois meninos lindos, Tomás e Duarte — senti finalmente paz. Miguel chorou ao segurá-los; Matilde pediu para ser a primeira a pegar nos irmãos ao colo.
Patrícia continuou presente, mas já não tinha o mesmo poder sobre nós. Aprendi a impor limites sem perder a compaixão; aprendi que família é feita de escolhas diárias e coragem para enfrentar fantasmas do passado.
Hoje olho para os meus filhos e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao passado dos maridos? Quantas lutam todos os dias para serem reconhecidas como mães numa família partida? Será possível perdoar quem insiste em magoar-nos? O que fariam vocês no meu lugar?