Entre Silêncios e Tempestades: A História da Família Almeida

— Não me venhas com desculpas, Catarina! — A voz do meu pai ecoou pela cozinha, cortando o ar como uma faca. — Já chega de desilusões nesta casa!

Eu tremia, com as mãos apertadas no avental, sentindo o cheiro do arroz queimado. O relógio da parede marcava quase nove da noite, mas ninguém parecia ter fome. A minha mãe, Maria do Céu, olhava para o chão, os olhos vermelhos de tanto chorar. O meu irmão mais novo, Tiago, fingia estar entretido com o telemóvel, mas eu via-lhe os dedos a tremer.

Tudo começou naquela manhã de março, quando encontrei a carta escondida no fundo da gaveta do meu pai. Não era a primeira vez que sentia que havia segredos entre aquelas paredes, mas nunca pensei que fosse algo tão grave. A carta era de uma mulher chamada Leonor. As palavras eram íntimas demais para serem apenas de amizade. Senti o chão fugir-me dos pés.

Durante dias, guardei o segredo comigo. O peso era insuportável. O meu pai sempre fora o pilar da família Almeida, respeitado na vila de Santarém, dono de uma pequena mercearia onde todos o conheciam pelo nome. Mas ali, naquela cozinha fria, eu via um homem diferente: cansado, distante, com olheiras profundas e um olhar que já não me reconhecia.

— Catarina, responde! — insistiu ele, batendo com a mão na mesa.

— Não tenho desculpas, pai. Só queria… só queria ser ouvida — murmurei, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.

A minha mãe levantou-se de repente. — Chega! — gritou ela. — Não vamos continuar a fingir que está tudo bem! Há meses que esta casa é só gritos e silêncios. Eu já não aguento mais!

O Tiago largou finalmente o telemóvel e olhou para mim com olhos suplicantes. — Catarina… diz-lhes. Conta tudo.

O meu coração batia tão forte que pensei que todos o ouviriam. — Encontrei uma carta — disse eu, a voz quase sumida. — Uma carta da Leonor para o pai.

O silêncio caiu como uma tempestade prestes a rebentar. O meu pai ficou lívido. — Não tinhas o direito…

— Não tinha? — interrompi-o, sentindo uma raiva antiga a crescer dentro de mim. — E tu tinhas o direito de nos mentir? De fazer a mãe sofrer?

A minha mãe desabou numa cadeira e começou a chorar baixinho. O Tiago saiu disparado da cozinha, batendo com a porta do quarto.

Ficámos ali, eu e o meu pai, frente a frente como dois estranhos. Ele passou as mãos pelo rosto e murmurou:

— Eu já não sei quem sou nesta família.

Naquela noite não dormi. Ouvi a minha mãe a chorar no quarto ao lado e o Tiago a atirar coisas contra as paredes. Senti-me culpada por ter revelado o segredo, mas também aliviada por já não carregar aquele peso sozinha.

No dia seguinte, a vila inteira parecia saber do nosso drama. As vizinhas cochichavam à porta da mercearia e até o senhor Joaquim, que nunca se metia em nada, me lançou um olhar de pena quando passei por ele na rua.

A minha mãe deixou de cozinhar e passou a sair de casa todos os dias sem dizer para onde ia. O meu pai fechou-se ainda mais no trabalho e só voltava tarde da noite. O Tiago começou a faltar às aulas e eu… eu sentia-me invisível.

Uma tarde, decidi ir atrás da minha mãe. Segui-a até à igreja da vila. Encontrei-a ajoelhada diante do altar, os ombros sacudidos pelo choro.

— Mãe…

Ela olhou para mim com olhos cansados. — Catarina, porque é que tudo isto nos aconteceu? Eu dei tudo por esta família…

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Pela primeira vez em meses, senti que éramos apenas duas mulheres perdidas à procura de consolo.

— Mãe, tu não tens culpa. Ninguém tem culpa de amar ou de se magoar…

Ela sorriu tristemente. — Às vezes penso em ir embora. Deixar tudo para trás.

O medo apertou-me o peito. — E eu? E o Tiago?

Ela passou-me a mão pelo cabelo como fazia quando eu era criança. — Vocês são tudo para mim. Mas também preciso de ser feliz.

Naquela noite, esperei pelo meu pai na sala escura. Quando entrou, olhou para mim como se eu fosse um fantasma.

— Catarina… desculpa.

— Porque é que fizeste isto à mãe? A nós?

Ele sentou-se pesadamente no sofá. — Senti-me sozinho durante tanto tempo… A tua mãe estava sempre ocupada convosco, com a casa… Eu só queria sentir-me importante outra vez.

— E agora? Vais embora?

Ele abanou a cabeça. — Não sei. Só sei que vos amo… mas já não sei se isso chega.

Os dias passaram arrastados. A minha mãe começou a fazer terapia com o padre António; o Tiago foi viver temporariamente com os avós em Lisboa; o meu pai dormia no sofá todas as noites.

Eu sentia-me dividida entre o desejo de fugir dali e a vontade de juntar os cacos da nossa família.

Um domingo à tarde, reuni coragem para falar com o Tiago ao telefone.

— Tenho saudades tuas — disse-lhe.

Ele suspirou do outro lado da linha. — Sinto-me traído por todos vocês… Mas também tenho saudades tuas.

— Achas que algum dia vamos voltar a ser uma família?

Ele ficou em silêncio antes de responder:

— Não sei se quero voltar ao que éramos antes. Talvez possamos ser algo novo… diferente.

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias.

No final do verão, a minha mãe decidiu pedir o divórcio. O meu pai aceitou sem protestar. Venderam a casa onde crescemos e cada um seguiu o seu caminho: ela foi viver para Coimbra com uma amiga de infância; ele ficou na vila e alugou um pequeno apartamento; eu fui estudar para o Porto; o Tiago voltou para Lisboa.

No último dia na casa antiga, sentei-me sozinha no meu quarto vazio e chorei tudo o que tinha guardado durante meses.

Hoje olho para trás e vejo que aquela tempestade nos mudou para sempre. Ainda sinto falta dos jantares em família, das tardes preguiçosas no quintal… mas também aprendi que não podemos viver só para agradar aos outros ou esconder as nossas dores atrás de silêncios.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vamos conseguir perdoar-nos verdadeiramente? Ou será que certas feridas nunca cicatrizam completamente?

E vocês? Já sentiram que precisavam de destruir tudo para poderem recomeçar?