O Presente Que Retirei: Quando o Amor se Torna Desconfiança

— Não acredito que estás a fazer isto, Rui! — gritei, sentindo o coração a bater tão forte que quase me sufocava. O envelope ainda estava na mão dele, os meus cinco mil euros embrulhados num laço dourado, e o olhar dele era de quem não percebia nada. Ou fingia não perceber.

Naquela noite, a casa estava silenciosa. Os miúdos já dormiam, e eu tinha passado horas a preparar o jantar especial para celebrar dez anos de casamento. Dez anos! Lembro-me de pensar, enquanto cortava o bolo, que talvez este fosse o início de uma nova fase. Mas o Rui parecia distante, o telemóvel sempre por perto, mensagens que ele dizia serem do trabalho. Eu queria acreditar.

Quando lhe entreguei o envelope, ele sorriu — aquele sorriso que me conquistou quando éramos jovens na faculdade do Porto. — O que é isto, Ana? — perguntou, com uma voz doce que já não ouvia há meses.

— Um presente. Para nós. Para ti. — respondi, tentando esconder a insegurança.

Ele abriu o envelope e os olhos brilharam ao ver o dinheiro. — Ana, isto é demais…

— Achei que podíamos fazer aquela viagem a Itália de que sempre falámos… Ou então usares para algo teu. — sorri, mas por dentro sentia-me vazia.

Ele abraçou-me, mas o abraço foi frio. E foi aí que tudo começou a desmoronar.

Na manhã seguinte, acordei sozinha na cama. O Rui já tinha saído para o trabalho, ou pelo menos foi isso que deixou escrito num bilhete apressado na mesa-de-cabeceira. Fui à cozinha e encontrei a minha mãe sentada à mesa, com um olhar preocupado.

— Dormiste mal outra vez? — perguntou ela.

— Não consigo parar de pensar… Achas normal ele andar tão distante? — desabafei.

A minha mãe suspirou. — Os homens às vezes têm fases… Mas tu conheces o Rui melhor do que ninguém.

Fui trabalhar com o coração apertado. No escritório, tentei concentrar-me nos relatórios da empresa de contabilidade onde trabalho, mas a cabeça estava longe. Durante a pausa para café, a minha colega Sofia aproximou-se.

— Estás bem? Pareces exausta.

— É só cansaço… — menti.

Mas Sofia insistiu: — Vi o Rui ontem à noite no centro comercial. Estava com uma mulher…

O chão fugiu-me dos pés. — Deves estar enganada…

— Não sei… Pareciam próximos. Desculpa se estou a meter-me onde não sou chamada.

Agradeci e tentei ignorar aquilo, mas as palavras dela ecoavam na minha cabeça como um trovão. Quando cheguei a casa, fui direta ao telemóvel do Rui. Nunca tinha feito aquilo antes. Senti-me suja, mas precisava de saber.

As mensagens estavam lá: “Adorei estar contigo ontem”, “Quando voltamos a ver-nos?”

O nome era Mariana. Não conhecia nenhuma Mariana no círculo de amigos dele.

Esperei até ele chegar a casa. O jantar estava frio quando finalmente entrou.

— Estiveste com a Mariana? — perguntei sem rodeios.

Ele ficou pálido. — Ana… Não é o que parece.

— Então explica-me! Porque é que ela te manda mensagens assim?

Ele hesitou. — É só uma colega do trabalho… Estamos a preparar um projeto juntos.

— Um projeto? Às dez da noite no centro comercial?

O silêncio dele foi resposta suficiente.

— Rui… Dei-te cinco mil euros porque confio em ti! Porque achei que merecíamos celebrar! E tu…

Ele tentou aproximar-se de mim, mas recuei.

— Preciso de pensar — disse-lhe, subindo as escadas para o quarto.

Durante dias, mal nos falámos. Ele tentava justificar-se, eu evitava-o. A minha mãe percebeu logo que algo estava errado e levou os miúdos para casa dela durante o fim de semana.

Na solidão da casa vazia, sentei-me no sofá com o envelope na mão. Ainda não tinha usado o dinheiro. Lembrei-me de todas as vezes em que pus os sonhos dele à frente dos meus: quando deixei de estudar para cuidar dos nossos filhos pequenos; quando aceitei mudar de cidade para ele seguir uma promoção; quando aguentei noites sozinha porque ele tinha reuniões intermináveis.

No domingo à noite, tomei uma decisão. Quando ele chegou a casa, sentei-me à mesa da cozinha e coloquei o envelope à minha frente.

— Quero o meu presente de volta — disse-lhe, olhando-o nos olhos.

Ele ficou em choque. — Ana…

— Não mereces este presente. Não mereces a minha confiança enquanto não fores honesto comigo.

Ele tentou argumentar, mas eu fui firme:

— Ou me dizes toda a verdade agora ou não há mais nada entre nós.

Foi então que ele desabou:

— Eu… Eu envolvi-me com a Mariana há uns meses. Foi um erro. Senti-me perdido no trabalho, na vida… Mas nunca quis magoar-te!

As lágrimas caíram-me pelo rosto abaixo. Senti raiva, tristeza e um alívio estranho por finalmente ouvir a verdade.

— O dinheiro fica comigo — disse-lhe calmamente. — E tu vais sair de casa esta semana. Preciso de espaço para pensar no que quero para mim e para os nossos filhos.

Ele tentou pedir desculpa, prometer mudanças, mas eu já não conseguia ouvir mais nada.

Os dias seguintes foram um turbilhão: explicar aos miúdos porque é que o pai ia dormir fora; lidar com os olhares curiosos dos vizinhos; enfrentar as perguntas da família dele; aguentar as noites em claro a pensar se tinha feito bem ou mal.

A minha mãe foi o meu pilar. — Tens de pensar em ti agora, Ana. Já deste demais.

No trabalho, a Sofia tornou-se confidente e amiga verdadeira. — Não estás sozinha nisto — disse ela num abraço apertado.

Comecei a usar parte do dinheiro para mim: comprei livros novos, inscrevi-me num curso de fotografia que sempre quis fazer e levei os miúdos ao Jardim Zoológico de Lisboa num fim de semana só nosso. Pela primeira vez em anos, senti-me livre para sonhar outra vez.

O Rui tentou voltar várias vezes. Mandou flores, cartas, até pediu aos amigos comuns para falarem comigo. Mas eu sabia que precisava de tempo e distância para me reencontrar.

Hoje olho para trás e vejo aquela noite do envelope como um ponto de viragem na minha vida. Percebi que não posso dar tudo de mim sem receber respeito e verdade em troca.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam a dar presentes — tempo, amor, dinheiro — sem se questionarem se realmente são valorizadas? E vocês? Já sentiram que deram demais sem receberem o mesmo em troca?