“Agora não, filha, estamos a falar de coisas sérias”: A minha vida à sombra da minha própria família

“Agora não, filha, estamos a falar de coisas sérias.” As palavras do meu pai cortaram o ar da sala como uma faca afiada. Eu tinha oito anos e segurava um desenho que fizera na escola, um retrato da nossa família, todos de mãos dadas num jardim inventado. Queria mostrar-lhes, queria ouvir um elogio, um sorriso, qualquer coisa que me dissesse: “Vemos-te.” Mas naquele momento, como em tantos outros, fui empurrada para o fundo da sala, para o fundo da vida deles.

A minha mãe olhou-me de relance, talvez com pena, talvez apenas com pressa. O meu irmão mais velho, o João, estava sentado ao lado do meu pai, a discutir as notas da escola e o futuro brilhante que todos lhe auguravam. Eu era a segunda filha, a que nunca dava problemas, a que sabia entreter-se sozinha. Cresci a ouvir que era “fácil de criar”, como se isso fosse uma virtude ou um castigo.

Os anos passaram e fui aprendendo a calar-me. A minha voz tornou-se um sussurro dentro de mim. Quando o João começou a sair à noite e a chegar tarde, era eu quem limpava os pratos do jantar para evitar discussões. Quando a minha mãe chorava baixinho na cozinha porque o meu pai chegava tarde do trabalho, era eu quem lhe fazia chá e ficava sentada ao seu lado em silêncio. Ninguém me pedia nada, mas eu fazia tudo.

Lembro-me de uma noite em particular. O João tinha chegado bêbedo e partiu um vaso no corredor. O meu pai gritou tanto que pensei que as paredes iam cair. A minha mãe chorava e eu, com doze anos, varri os cacos enquanto todos discutiam na sala. Ninguém reparou em mim. Ninguém perguntou se estava assustada ou cansada. No dia seguinte, quando acordei para ir à escola, encontrei o vaso colado com fita adesiva. Era assim que resolvíamos as coisas: colando-as à pressa, fingindo que nada tinha acontecido.

Na escola também era invisível. As professoras diziam que eu era “discreta”, “aplicada”, “educada”. Nunca fui a melhor aluna nem a pior; nunca fui a mais bonita nem a mais feia. Era apenas mais uma. Tinha uma amiga, a Mariana, que dizia que eu era “boa ouvinte”. Ela contava-me tudo: os problemas com os pais, as paixões secretas, os sonhos para o futuro. Eu ouvia e sorria, mas nunca falava de mim. Tinha medo de ocupar espaço.

Aos dezasseis anos apaixonei-me pela primeira vez. O Miguel era da turma do João e vinha muitas vezes lá a casa estudar. Um dia ficou até mais tarde e fomos juntos buscar pão à padaria da esquina. No caminho ele contou-me que queria ser músico e fugir daquela cidade pequena onde todos sabiam tudo sobre todos. Eu disse-lhe que também sonhava sair dali, estudar em Lisboa, ver o mar todos os dias. Ele olhou para mim como se me visse pela primeira vez.

Mas quando contei à minha mãe sobre o Miguel, ela riu-se e disse: “Não te metas nisso, filha. Os músicos só dão trabalho.” O João ficou furioso quando soube e deixou de falar comigo durante semanas. O Miguel afastou-se devagarinho; deixou de vir cá a casa e eu deixei de sonhar alto.

No último ano do secundário candidatei-me à Faculdade de Letras em Lisboa sem dizer nada a ninguém. Quando chegou a carta de aceitação, mostrei-a à minha família durante o jantar. O meu pai nem levantou os olhos do prato: “Lisboa? Isso é longe demais para ti.” A minha mãe suspirou: “E quem é que vai ajudar aqui em casa?” O João disse apenas: “Boa sorte.” Senti-me traída por todos eles e por mim própria — porque no fundo já esperava aquela reação.

Fui para Lisboa na mesma. Arranjei um quarto minúsculo num apartamento partilhado com duas raparigas de Évora e um rapaz do Porto. Pela primeira vez na vida tive um espaço só meu — mesmo que fosse apenas uma cama encostada à janela e uma prateleira cheia de livros usados.

Os primeiros meses foram difíceis. Sentia falta do cheiro do café da minha mãe pela manhã e até das discussões intermináveis ao jantar. Mas também sentia uma leveza nova: ninguém esperava nada de mim ali; podia ser quem quisesse.

Comecei a escrever num caderno tudo aquilo que nunca tinha dito em voz alta: as mágoas antigas, os sonhos adiados, as perguntas sem resposta. Escrevia cartas à minha mãe que nunca enviei; poemas sobre o João; listas de coisas que queria fazer antes dos trinta anos.

Um dia recebi uma chamada da minha mãe: “O teu pai está doente.” Voltei para casa durante uns dias para ajudar com as idas ao hospital e as tarefas domésticas. O João já tinha saído de casa há meses; agora era eu novamente quem segurava tudo em silêncio.

Numa dessas noites sentei-me com o meu pai na varanda enquanto ele fumava um cigarro escondido da minha mãe. Olhou para mim como se me visse pela primeira vez em anos:

— Sabes, nunca pensei que fosses capaz de sair daqui sozinha.

— Porque não? — perguntei-lhe.

Ele encolheu os ombros:

— Sempre foste tão calada… Achei que precisavas de nós.

— Talvez precisasse — respondi — mas também precisava de mim.

Ele não disse nada durante muito tempo. Depois apagou o cigarro e entrou em casa sem olhar para trás.

Quando voltei para Lisboa senti-me mais leve e mais triste ao mesmo tempo. Percebi que nunca seria suficiente para eles — não porque não me amassem, mas porque não sabiam ver-me.

Hoje tenho trinta e dois anos. Trabalho numa biblioteca municipal em Almada e vivo sozinha num apartamento pequeno mas cheio de plantas e livros. A minha mãe liga-me todas as semanas para perguntar se estou bem; o João tem dois filhos e raramente fala comigo; o meu pai morreu há três anos sem nunca termos tido outra conversa verdadeira.

Às vezes ainda me sinto aquela menina com o desenho na mão à espera de ser vista. Mas aprendi a olhar-me ao espelho e dizer: “Eu vejo-te.” E isso basta-me — pelo menos na maioria dos dias.

Pergunto-me muitas vezes: quantos de nós vivem à sombra das expectativas dos outros? Quantos aprendem demasiado tarde a ocupar espaço no mundo? E vocês — já conseguiram sair do papel de figurante na vossa própria vida?